Primeiro atiram-te sorrisos esparsos, deixam cair elogios, afagam-te o ego acidentalmente. Admiram-se por pensarem exactamente isso que estás a dizer com grandes gargalhadas concordantes, Depois deixam que tudo se resuma a um ou outro encontro esporádico, perfeitamente casual, onde repetem o ritual de agradar. Ao fim de um tempo, sempre casualmente, lembram-se que vai haver um jantar em tal parte e que se calhar até acharias piada em ir. Convidam-te.
Na noite em que chegas, reparas que está lá um ou dois tipos que conheces de vez em quando no meio de uma data de gente que nunca viste. São todos muito simpáticos, atarefados em palmadinhas nas costas e isqueiros rápidos que te começam a tirar a vontade de fumar. Encaminham-te para a mesa sempre sob o signo da mais pura cordialidade. Fazem questão de arredar a cadeira para te sentares, distribuem-se aperitivos e fala-se de temas actuais da forma mais generalizada. Até que chega o momento da verdade, o do jantar propriamente dito. As travessas fumegantes começam a chegar vindas da cozinha, sob o olhar atento e esfomeado dos convivas. Uma delas é colocada á tua frente. Instala-se o silêncio na sala, os olhares concentram-se todos em ti. Este é o momento de todos os momentos da tua vida, a ocasião da escolha, o gesto de optar…ou não. Inclinas-te ligeiramente e sentes o cheiro da travessa através dos fumos que emana. Mas, por qualquer capricho do destino, da selecção gastronómica ou da ética, algo te diz que há ali qualquer coisa. Algo te avisa que se avançares nunca mais poderás recuar, é um caminho sem retorno.
Educadamente voltas-te a erguer e explicas que não tens fome. Que comeste há pouco tempo e que até nem tens passado bem ultimamente, mais uns enjoos, qualquer coisa que não anda a funcionar bem dentro de ti. Agradeces muito mas explicas que vais ter de declinar. Quase imperceptivelmente, os rostos de bonomia e franca camaradagem começam aos poucos a desenhar ligeiros traços de apreensão. O teu anfitrião acompanha-te até à porta, sempre atencioso e muito cordial contigo, embora aqui e ali essa cordialidade se comece a esgotar lentamente como uma maré. Chamam-te um táxi, o teu anfitrião despede-se de ti e a tua vida, ou melhor, a tua eterna vida vitoriosa e sem sobressaltos deixou de existir. Voltaste à condição de simples mortal porque recusaste assinar o contrato. Ao não querer comer preservaste a tua dignidade mas prejudicaste o lucro alheio, desafiaste o poder. Ninguém te irá perseguir ou sequer hostilizar daqui em diante. Serás mais um daqueles que não existem, que não são vistos, que ninguém ouve ou conhece. Serás mais um distinto anónimo que diz umas coisas interessantes mas a cuja voz se descola o estatuto de burro, impedindo-a de chegar ao céu. O teu discurso acabará invariavelmente onde começou: dentro de ti. Alguns daqueles convivas do jantar em que te recusaste a servir da travessa vão continuar a aparecer no teu caminho. Só que desta vez irão carregados de pressa, cheios de compromissos inadiáveis que se vão acumulando até ficar apenas um aceno ao longe. Mas não te podes queixar. Ao menos a ti serviram-te a travessa. Ao menos a ti, deram-te a escolher, estenderam-te o contrato. Tu é que escolheste não assinar ao não meter as mãos na travessa. Há milhões que, sem o saber, trabalham, isto é, são escravos deles. Resta-te o silêncio e a tranquilidade de consciência. Essa coisa vaga que não alimenta o corpo mas defende a alma…
Artur
1 comentário:
E o que "te" resta, "silêncio e tranquilidade de consciência" é tão só o que dá vida à alma...não se morre assim!!
*Ganda Malha;)
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