segunda-feira, 16 de novembro de 2009

CRÓNICA PARA O CARLOS LOPES


LES 400 COUPS

François Truffaut

França 1959


Emblemático a muitos níveis, a estreia de Truffaut na longa-metragem não podia ter sido mais auspiciosa. Arrebatando o troféu para a melhor realização no Festival de Cannes de 1959, o mundo percebe que a “nouvelle vague” veio para ficar. O, até então, controverso e radical crítico de cinema, ascende rapidamente ao estatuto de “anjo consensual”, epíteto que jamais abandonaria até ao fim da sua carreira. Para isso bastou apresentar a história de Antoine Doinel de acordo com os novos métodos de filmar. Assim, durante cerca de uma hora e meia vamo-nos enternecendo com o caminho de um jovem empurrado por todas as injustiças, obrigado a reagir e, ao fazê-lo a excluir-se de um mundo que o excluiu muito antes de nascer. Obcecado com a sinceridade e espontaneidade das imagens, Truffaut passeia a câmara por uma Paris de cenários naturais, sem artifícios plásticos, em movimentos rápidos e inquietos “como o olhar de uma criança”. Antoine, numa soberba interpretação estreante de Jean- Piérre Léaud, vê-se confrontado com três vertentes essenciais da sua vida: Família, Escola e Lei, personificados por gente mesquinha, medíocre e egoísta, cujo comportamento o empurra inevitavelmente a fazer “trinta por uma linha” (esta a expressão correcta do título original do filme). Vivendo em condições precárias com a mãe o padrasto, vamos sabendo ao longo do filme que o seu nascimento não foi desejado. Mais tarde, numa fuga às aulas para um passeio com o amigo em Paris, surpreende a mãe com um colega do trabalho. Na escola é castigado pelas razões erradas. Tudo se precipita com a visita da mãe à escola. Antoine tinha dito que havia faltado porque ela tinha morrido. A culpa e o medo passam a ser os seus companheiros antes sequer de lhe pertencerem. Antoine não tem uma única ponte que o integre na vida, seja no cenário degradado da sua casa, na incompreensão da escola ou na confrontação com a lei. A casa de correcção é só o ponto culminante da indiferença colectiva que família e sociedade lhe ofereceram ao longo da curta existência. Segue-se a fuga e a cena final em frente ao mar. Entre o mundo e mar, Antoine está encurralado, sem saída.
Filme de uma ternura assustadora, LES 400 COUPS é também um pouco autobiográfico na medida em que o próprio realizador foi uma criança problemática resgatada do reformatório por André Bazin (um dos mentores mais importantes dos cineastas da “nouvelle vague”. Para Truffaut, a alternativa ao cinema teria sido a marginalidade e a morte precoce nas teias do crime. A sua obra é um alvo fácil de paixão e admiração na medida em que, dentro dos cenários mais negativos, injustos e adversos, o elemento humano vem ao de cima enquanto esplendor de inocência e solidariedade. Sem deixar de analisar a realidade na sua forma mais cruel e perniciosa, a casa negra descobre sempre uma criança dentro de um armário pronta para secar as suas lágrimas. A qualidade dos seus filmes está patente na actualidade com que os conseguimos (re)ver 30 e 40 anos depois. Para os mais distraídos com a obra de Truffaut, LES 400 COUPS é um excelente princípio para descobrir uma obra fantástica.

Artur

3 comentários:

elbett disse...

A cena final é maravilhosa!!
Bjo

Carlos Lopes disse...

Obrigado, Artur. Ler o teu texto é quase ver o filme. E eu, que já o vi e revi tantas vezes, gostei de voltar a vê-lo, lendo-te. Um abraço.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Elsa e Carlos,
Obrigado pelos vossos comentários. Escrever é isto. Abrir conversas, trocar emoções, distribuir ideias.