terça-feira, 6 de outubro de 2009

U OMÃI QE DAVA PULUS






“U omãi qe dava pulus era 1 omãi
Qe dava pulus grades. El pulô tantu
Qe saiu pêlo tôpu.”



Esta é a natureza dos homens. Aquela que os faz nascer todos diferentes, incluindo os que cedo descobrem a arte do salto. Uma vez encontrada a mecânica do impulso, tendem a ampliá-la gradualmente. Muitas vezes acabam por sair pelo “tôpu”.
Publicado pela primeira vez em 1969, “A Noite e o Riso” resulta da composição de várias tentativas estilísticas, onde os elementos literários funcionam enquanto contributos para a construção de uma modernidade possível na literatura portuguesa das décadas de 50 e 60 do século passado. Nuno Bragança, o seu autor, é como que o paradigma dessa época em que tradição e inovação insatisfeita se balancearam, num pano de fundo de impossibilidade criativa quase absoluta.
Tudo começa com uma frase de ortografia própria de um recém-chegado às leis da escrita. Logo aí, para além da gargalhada que provoca, está aberto o caminho para um grupo de sinais do que virá a seguir. Um nítido sintoma de inquietude, próprio de quem salta. E quem salta cresce, e quem cresce aprende. Crescimento e aprendizagem serão pois os elementos mais importantes na essência do romance.
Numa primeira fase assistimos à apresentação e contestação dos valores vigentes. Família, Colégio, Religião e Justiça, são as estruturas estabelecidas no momento do parto da consciência. A estes aparelhos ideológicos sucederão, por oposição, a descoberta dos segredos resvalantes (como os corpos resvalam), a inquietante arte de escrever, a provocação dos mestres.
Depois a prosa segue de forma fragmentada, estabelecendo-se um percurso narrativo que, não sendo nem linear nem circular, antes parece uma sucessão de abordagens falhadas num mesmo objectivo perdido. A sucessão de pequenas histórias (fábulas?), onde narrador e coisa narrada (ou “Eu”), se cruzam várias vezes, adquire nitidez à medida que se concentra sobre dois eixos principais: a Mulher e a relação do “Eu” com o meio, o seu país. No primeiro caso é o “Eu” que se vai construindo com a descoberta do “outro” feminino. A exterioridade do mundo da fêmea e a passagem da fronteira para o lado de lá, representam mais uma fase decisiva de crescimento. A “rapariga do canavial” Luísa Estrela e Zana, são como que a consciencialização de que o “Eu” não pode subsistir enquanto entidade isolada. No último bloco, Zana será a personificação de uma globalidade feminina, mais conhecida e mais admirada. De referir ainda a passagem de Luísa Estrela, uma das mais bem conseguidas, onde a brutalidade do real não consegue dispensar uma metafísica do humano. Talvez Fellini em LA STRADA, talvez Pasolini num dos seus melhores momentos.
Em pano de fundo um país adormecido onde a vida se procura desesperadamente no fim de uma garrafa, nas profissionais do amor, na marginalidade urbana. Transferência de escalão social e viagem do centro da cidade para a periferia suburbana, a inevitável mudança de valores e códigos é mais uma mudança de cenário do que um processo aquisitivo de referências. Como se o “Eu” a tudo assistisse tomando as suas notas, registando as suas experiências. Filho de lado nenhum, o seu trajecto decorre por entre um país de saloios, consciência ampliada quando se está lá fora. No meio de tudo isto, a vontade inexorável da escrita, um impulso irreprimível de fazer da vida coisa narrada. Escrever registando os outros, procurando o “Eu”. No dizer do autor: “ O escritor português do século vinte, segunda metade, deve saber mergulhar na tradição e logo de seguida regressar à superfície vivo.”
O processo narrativo vai-se construindo através de repetições, rupturas, saltos e regressões de diversas formas de movimento.
Embora com pouca divulgação junto do grande público, a obra de Nuno Bragança marca um ponto fundamental de viragem na literatura portuguesa, influenciando as gerações de autores que se lhe seguiram. Com influências do Surrealismo e de parte da literatura americana dos anos 40 (Faulkner e Hemingway), Nuno Bragança, juntamente com Luís de Sttau Monteiro e Vergílio Ferreira, marca a geração que deu à literatura portuguesa a frescura de um novo romance escrito na viagem às profundezas da tradição. A descoberta do desencanto do país que somos (o “não ser” que nos é tão familiar) só será redimível através da lucidez do riso.
“A lucidez do riso face ao absurdo é talvez o grande passo em frente da cultura contemporânea, a invenção da técnica de “parir sem dor” um mundo novo.”
Ou morrer a tentá-lo um pouco todos os dias.

Artur

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