terça-feira, 27 de outubro de 2009

SER PORTUGUÊS

Teria imensa dificuldade se de repente me pedissem para definir o que é isso de ser português. No entanto, há logo à partida duas componentes que me ocorrem de imediato. A primeira é a de que ao ser português aprendi a lidar com duas das piores maleitas que podem assolar o ser humano: o medo e a ignorância. A segunda é a de que há apenas um país que se chama Terra, e uma raça que se chama Humanidade.
É uma sensação fantástica viajar uma noite inteira de avião e chegar de manhã cedo ao outro lado do mundo, sair e ouvir alguém que lá mora dar-nos os bons dias em português. Se não for pela paisagem, pela arquitectura ou mesmo pelo contraste climatérico, dir-se-ia que aquela longa viagem não passou de uma noitada nas ruas da mesma cidade. O português, mais do que se confinar a um território a uma religião ou a uma espécie exclusiva de povo, é acima de tudo, uma maneira de sentir, um estado de espírito por excelência. Antes de sermos portugueses fomos o palco por onde passou quase todo o tipo de povos da Antiguidade. Passaram, foram ficando e misturando-se entre eles, daí termos hoje o DNA mais completo da espécie. Começámos a produzir vinho ainda antes das invasões romanas. Quando chegou a nossa vez de ter um nome (Portugal) já a universalidade estava inscrita nos nossos cromossomas. Não somos campeões da coragem mas sabemos lidar com o medo. Como? Exorcizando-o nas nossas tradições mais antigas. Continuamos a ser o único povo do mundo que enfrenta o touro de caras, dentro de um espectáculo que mais não é do que um ritual de morte. Trabalhamos o medo na tradição da nossa canção mais emblemática: o Fado. Cantamos a tragédia, a desgraça, o amor contrariado, a tristeza, etc. Mas enquanto cantamos o fado, encharcamo-nos de vinho, choramos a desgraça daqueles que nem sequer conhecemos. Ou seja, em relação à inevitabilidade das coisas más que a vida nos dá sempre, ensaiamos a tristeza a um ponto de controlar o nosso próprio medo. Talvez por isso sejamos o único povo que conta anedotas em velórios, não havendo nisso nenhum desrespeito para o morto. Não deixamos de ter medo, conseguimos é que ele não nos amedronte a nós. E, inevitavelmente associado ao medo, temos a ignorância. Só podemos temer aquilo que desconhecemos. Por isso arrancámos pelo mar fora, demos uma tareia no Adamastor e, principalmente, abrimos as estradas de comunicação no planeta, permitindo a entrada numa nova era, numa nova etapa da Humanidade. As Descobertas foram um marco de tal forma importante na história da Humanidade que um historiador americano (logo, insuspeito), não hesitou em definir a façanha como a mais importante a seguir à invenção da roda.
Mas como toda a gente que se prepara diariamente para dominar o medo, acabamos por ser arrogantes, desleixados, indisciplinados. Em tudo menos no humanismo, na atitude e respeito que sempre tivemos fora do rectângulo europeu.
Deixemo-nos de histórias. Não queremos ser melhores nem piores que ninguém. Somos até mesmo especialistas em auto-crítica. Mas não somos menos que os outros. Pessoalmente adoro o Brasil, a sua cultura, a sua simpatia e a sua política de nunca nos ter fechado a porta sempre que lhes pedimos ajuda. Sou angolano de nascimento, num tempo em que Angola era território português. Se uma vez por outra pegássemos num ou noutro romance de um destes países, para alem de Cabo Verde, Moçambique, etc, de certeza que encontraríamos mais alguma coisa do que a evidência da língua comum. Encontramos uma sensibilidade, uma forma muito humana de estar com a vida, com as plantas e com os animais.
Não foi por acaso que os brasileiros descobriram o Fernando Pessoa e se entusiasmaram com os seus poemas antes de lhe ser dada a devida atenção em Portugal. Não foi por acaso que os portugueses se renderam incondicionalmente aos livros de Jorge Amado ou à MPB. Foi apenas pela simples razão que estamos a falar de elementos da mesma família. Que brigam entre si, que se abraçam, que se amam. Que fazem da primeira tentativa de consciencialização do conceito de Aldeia Global uma realidade em crescente aperfeiçoamento.

Artur

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