Na obra de Stanley Kubrick, a violência é um dos seus elementos principais. De uma forma mais ou menos evidente, poderíamos dizer que todos os seus filmes encontram no fenómeno violento o pretexto, a razão e o desenrolar dos seus códigos expressivos. Como se para falar da espécie humana fosse impossível ignorar a sua dimensão animalesca omnipresente, escamoteada ou evidente no transcrever das emoções e dos comportamentos.
Desde o início que se percebe, ou antevê na obra deste cineasta uma força criadora gigantesca, requintadamente elaborada e surpreendente. O universo cerrado dos argumentos e a luz quase expressionista das primeiras longas-metragens apresentam um jovem herdeiro da tradição do “filme negro”, continuador de Fritz Lang ou Samuel Fuller. Ao longo do tempo nunca faltarão exemplos marcados por uma violência expressionista um pouco barroca, de uma certa teatralidade da morte. Veja-se o exemplo do assassínio de Quilty (Peter Sellers) em LOLITA, e os crimes de LARANJA MECÂNICA, onde esta teatralidade da morte se manifesta influenciada por uma certa expressão hebraica da Europa Central que acabou por marcar o cinema americano dos anos 30.
GUERRA
Sendo o exemplo mais acabado da estupidez humana, a guerra foi utilizada por todas as formas de arte permitindo-lhes alguns dos melhores momentos de expressão e identificação de muitos dos lados sombrios e escondidos no nosso subconsciente. Na obra de Kubrick a guerra ocupa um papel importante que se divide por alguns dos seus melhores momentos cinematográficos. Vamos encontrar o primeiro exemplo no ano de 1953 em FEAR AND DESIRE, episódio a um tempo sangrento e lúdico de uma guerra imaginária. Segue-se PATHS OF GLORY (1957), um dos mais surpreendentes, mais completos e mais brilhantes manifestos anti-guerra alguma vez conseguidos em cinema. A guerra volta a ser o tema escolhido no seu penúltimo trabalho em FULL METAL JACKET (1987), uma versão muito particular do conflito mais cinéfilo de que há memória, o do Vietname. Um filme muito estranho e ambíguo, ainda hoje difícil de entender.
São três situações onde a guerra em sentido estrito ocupa toda a narrativa.
Noutros casos continuaremos a encontrar a guerra, quer sob a forma de ausência, quer através da sátira (DR. STRANGELOVE, 1963), ou em breve passagem (BARRY LINDON, 1975). PATHS OF GLORY move-se no cenário das trincheiras da I Guerra Mundial, espaço de algumas das mais famosas manifestações de deserção num teatro de guerra, e amplia o absurdo imediato na leitura da situação, um absurdo ainda maior acerca do destino de três soldados do exército francês. Após a tentativa fracassada de alcançar um objectivo nas linhas alemãs, um general tem a brilhante ideia de tirar três nomes à sorte para serem fuzilados, servindo esse gesto de incentivo à melhoria da prestação dos seus camaradas. Absurdo é a palavra que acompanha o filme desde o início até à sua conclusão. Três homens são mortos, não pelo inimigo, mas por ordem e vontade do homem que os comanda. Ausência de qualquer tipo de racionalidade e a permanente proposta de ultraje desconcertante sobre o espectador combinam o distanciamento que Kubrick começa a ensaiar para mais tarde chegar a FULL METAL JACKET. Neste caso o cineasta desafia o espectador a experimentar certas variedades de desconforto, como se sentisse uma enorme incapacidade de transmitir o sentir absoluto do espírito de uma guerra. Como se a linguagem cinematográfica só por si fosse insuficiente, Kubrick subverte as regras do filme típico sobre a guerra. Afasta-se. Exibe os homens enquanto seres arrancados a si próprios e transformados em máquinas durante a recruta durante toda a primeira parte do filme. Imita o papel do sargento instrutor enquanto anula lentamente todos os requisitos civilizacionais. Qualquer discurso convencional, qualquer argumentação racional, qualquer noção de bom senso fica feita em tiras na presença dos episódios traumatizantes que compõem uma guerra.
Kubrick age com uma regular ausência de piedade, situação crescente ao longo da sua obra. Em PATHS OF GLORY constrói uma esperança para os três homens condenados ao pelotão de fuzilamento. Uma esperança que nunca chega a concretizar-se. Em BARRY LINDON a racionalidade brilhante do séc. XVIII é despojada das suas roupagens civilizacionais com a marcha dos soldados de infantaria para a barreira de fogo do inimigo. Comandante e subordinados perdem a ligação entre si nestes filmes. O inimigo convencional é um ser ausente, sem rosto, que se vai subvertendo aos poucos no interior de cada homem. O Homem é o seu próprio carrasco. A possibilidade tranquilizante de contacto humano é sistematicamente apagada. A espécie assiste ao desfile da sua própria estupidez, incapaz de a conseguir travar ou sequer menorizar os seus efeitos mais terríveis. Mesmo em pleno séc. XX a estupidez continua, apenas muda o nome para se passar a chamar “guerra-fria”. É o que acontece em DR. STRANGE LOVE, onde uma equipa de generais e políticos, os “guerreiros frios”, decide o destino da Humanidade e do planeta em termos nucleares, longe dos teatros de operações. Tal como as pessoas se encontravam longe de decidir o que quer que fosse na bebedeira dos mísseis entre russos e americanos. É caso para perguntar se Kubrick tinha alguma simpatia pela Humanidade. A resposta foi dada em 1972 para a revista Newsweek: “ Acima de tudo, o homem é o assassino mais ausente de remorso que jamais percorreu a terra. A atracção que a violência exerce em nós revela em parte, que no nosso subconsciente somos muito semelhantes aos nossos antepassados primitivos.”
BANDA SONORA
Continuando a desenvolver a ideia do distanciamento e ausência de piedade do cineasta em relação aos seus personagens, teria todo o interesse uma breve avaliação da utilização que Kubrick faz do elemento sonoro no contexto da linguagem cinematográfica. Aos poucos a música vai-se afastando da sua função redutora de acompanhamento ou decoração das cenas para se transformar em elemento dissonante, afectivo ou mental. Dois exemplos: O “Danúbio Azul” em 2001, A SPACE ODISSEY, e a Nona Sinfonia de Beethoven em LARANJA MECÂNICA. Em FULL METAL JACKET Kubrick utiliza o elemento sonoro para ampliar a força das imagens embora nunca através da compatibilidade ou harmonia entre eles. As músicas são desadequadas, ou porque se afastam do espaço do universo musical do tempo, ou porque, mesmo tendo a ver com o Vietname surgem em confronto com o espírito ou significação das imagens que acompanham. Com Kubrick, cabe ao espectador destrinçar a dissonância entre “áudio” e imagem. A banda sonora é utilizada por Kubrick como uma “tendência de avaliação”, um pulsar que se adivinha, ao invés de um acessório que acompanha ou simplesmente decora.
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