segunda-feira, 6 de julho de 2009

FELLINI


A mais importante lição que a obra de Fellini nos ensina é a de que é possível amar a Humanidade sem ter nela grande fé, sem que necessariamente lhe seja passado um cheque em branco por parte da capacidade de crença de um autor. Criador decisivo para a História e Teoria do Cinema da segunda metade do século passado, Fellini esteve sempre lá, criando momentos fulcrais do seu tempo, contribuindo com o seu empenho e originalidade para a evolução, a inovação e o efeito surpresa dos contadores de imagens.
Começando como co-autor do argumento de ROMA, CIDADE ABERTA de Rossellini, Fellini partiu à descoberta do mundo e de si próprio, exorcizando fantasmas, esvaziando dogmas, exibindo o grande absurdo da condição humana, chorando e rindo com o rosto de criança que tanto grita que “o rei vai nu” como se torna arquitecto da fantasia e do fascínio de que tanto necessitamos para continuar a viver. Para a posteridade e para os teóricos do fenómeno fílmico ficam dois momentos altos de cinema chamados LA STRADA (1954) e OITO E MEIO (1963). Tanto num como noutro a sua obsessão libertária de criação “choveu” sobre o cinema europeu, abrindo polémicas e, principalmente, novos caminhos, novas portas para que os que viessem a seguir poderem aproveitar e desenvolver. No já citado ROMA CIDADE ABERTA, o inicialmente previsto documentário sobre o fuzilamento do padre D. Morosini pelos fascistas, acabou por dar lugar à ficção, convertendo-se num dos melhores exemplos da escola neo-realista italiana. Mas rapidamente o neo-realismo se torna pequeno e apertado demais para o seu génio criativo e, se bem que ao colaborar em MILAGRE DE MILÃO de Vittorio de Sica, Fellini ensaiasse já a sua libertação dos cânones da ortodoxia vigente (a parábola dos pobres que alcançam a liberdade apenas depois de morrer, ascendendo ao céu), é em LA STRADA que tudo se torna mais nítido.
A ruptura desenvolvida neste colosso é apenas um verdadeiro ensaio dialéctico sobre a ligação, a oposição e a indiferença entre Neo-Realismo e Surrealismo. Ou entre uma forma maniqueísta de ver a vida e as relações humanas e a descoberta da condição do absurdo que regula as nossas vidas. Para trás ficavam LUCI DEL VARIETÁ (de parceria com Lattuada em 50), O XEQUE BRANCO (52) e OS INÚTEIS (53).
Em 1963 surge OITO E MEIO e com ele a abertura para uma nova etapa formal de fazer cinema. A visão onírica e excessiva que Fellini tinha do mundo e o tornava num enorme circo ganhava continuidade depois de LA DOLCE VITTA (60). A partir de OITO E MEIO, outros cineastas pegariam na “deixa” para inaugurar um dos mais férteis períodos criativos do cinema europeu. Estava inaugurada a formalidade caótica de fazer imagens com sentido.

Foi retratista de costumes, da consciência e dos sentimentos que vão apodrecendo numa sociedade satisfeita com a sua própria decadência. Foi destruidor de mitos até aí adormecidos no nosso inconsciente. Foi um apóstolo da redenção ao descobrir no sofrimento mais patético e na decadência mais inapelável o segredo de uma esperança, uma réstia de vontade por desenvolver. Foi a criança que imagina e constrói a fantasia não só enquanto forma de libertação mas também como capacidade adormecida de sonho que existe em todos nó, devolvendo-nos essa liberdade de escolher entre o melhor e o pior das nossas acções. Daí o Circo e a sua presença referencial em vários filmes a que acaba por dedicar um inteiro, I CLOWNS (70).
Amou as mulheres como ninguém, enquanto elemento imprescindível na vida dos homens e amou uma das mais belas cidades do mundo que transformou em mãe adoptiva. Desta alquimia emocional surgiram ROMA DE FELLINI (72) e A CIDADE DAS MULHERES (80).
Consagrado e premiado internacionalmente, Fellini fez da sua obra a construção de um mundo que, sendo muito pessoal, se acabou por revelar pertencer a toda a gente. Um mundo comprometido com a sua própria consciência, a sua própria experiência. Um caleidoscópio de cenários, seres e imagens conjugados num bailado ritual, decadente, surrealista, hilariante, dramático e existencial que, celebrando a vida acaba por dar identidade à nossa consciência.
O exemplo e o legado da obra de Fellini passam pela paixão pela seriedade da criação, pela identidade e afirmação do cinema europeu e, acima de tudo, por um amor enorme pela Humanidade cada vez mais vítima de si própria, da sua ganância, estupidez e incapacidade de perceber que a vida não é mais que um contrato a prazo, extensivo a todos os seres vivos, submetido à lei do absurdo. Uma lei sem sentido que embora não se podendo destruir é possível contrariar através do nosso comportamento solidário, humanista e racional para com o nosso semelhante e para com o planeta em que vivemos. Ver os filmes do Fellini é estar mais próximos do nosso melhor lado.

ARTUR

2 comentários:

Carlos Lopes disse...

Já há muito que estavas a dever-nos um texto sobre Fellini, Artur. Contas feitas, mais vale tarde que nunca. Ganda malha. Assim sendo, acho que hoje vou rever o OITO E MEIO.

Abraço

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Carlos. Espero que tenhas gostado. 1 abraço