terça-feira, 14 de abril de 2009

O FIM DE COISA NENHUMA

Estava numa daquelas noites em que nada lhe apetecia. Pairava entre a sala e o escritório como andorinha perdida em tarde de Primavera a chover. Os rugidos televisivos iam ficando cada vez mais imperceptíveis de significação até se fundirem num ruído de fundo distante e permanente. Sentou-se à secretária empenhado em continuar o romance que estava a escrever mas que nunca mais conseguia acabar. Agora percebia porquê. Percebia porque é que insistia em adiar, porque é que não lhe dava vontade nenhuma quando tinha todo o tempo para o fazer e espaço nenhum para se queixar. Tinha-se apaixaonado por ele. Cada detalhe, cada capítulo, cada cena construída de forma meticulosa, sem deixar nada ao acaso. Cada personagem, a sua coerência interna, a sua linha de actuação ao longo da história, tudo estava programado com um rigor elevado. O rigor de quem ama muito aquilo que está a fazer. Acendeu o cachimbo entre hesitações bolorentas que a humidade desenhava nos fósforos. Finalmente lá conseguiu começar a dar umas baforadas a muito custo. Olhou para os livros na estante e fixou-se num com quem já não falava há muito tempo. Foi buscá-lo, dedilhou-o e tentou-se lembrar desta página ou daquela mais adiante. Sem efeito. Agarrou-o então e começou a devorá-lo, a falar com ele como se fosse a primeira vez que conversavam. Deitou-o abaixo em dois dias. No fim sentiu-se feliz por ter voltado a ler aquele livro escrito com a elegância e a desenvoltura de um homem que amava as pessoas, amava o seu tempo, amava a vida. Por isso tinha forçosamente que amar o que escrevia. Esse autor já tinha ido para o outro lado há muito tempo mas os seus livros ficavam como interlocutores válidos das suas conversas. Os livros ficam e continuarão a ficar nas nossas casas, a contar a nossa história e a dos outros, a conversar connosco. Os livros são os companheiros de sempre que imortalizam e permitem vencer a morte mantendo as conversas sem limite de tempo. Os livros são o fim de coisa nenhuma.
ARTUR

2 comentários:

Clarice disse...

Os livros são também a vida nas nossas mãos... é uma das poucas hipóteses que temos de prolongar a nossa vida interior… que é “o fim de coisa nenhuma”… bonita forma de dizer a alma que os livros têm!

*belo texto, Artur!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Clarice. Volta sempre.