quarta-feira, 29 de abril de 2009

“M” – ENTRE O MAR E AS MONTANHAS

“M” vivia perto o mar e desde pequeno que se sentia fascinado por um rádio que o avô gostava de ouvir todas as noites em detrimento da televisão. Nesse rádio, na patilha seleccionadora de frequências, havia a Onda Curta, uma espécie de alcance planetário capaz de encontrar qualquer estação de rádio em qualquer parte do mundo. Certas noites, avô e neto ficavam ali em silêncio a receber idiomas estranhos e músicas exóticas que o mais velho ia identificando. Marroquino em oração na mesquita, noticiários russos, folclore chinês, etc. O mundo cabia naquela caixa de sons entrando e saindo ao sabor do botão da sintonia, intervalado de ruídos imperceptíveis, testemunhos “squelch” do vazio ou da geografia das estradas do éter. Quando já estavam fartos de correr mundo tentavam encontrar as comunicações das embarcações de pesca. Era a última fase do serão: ouvir as mensagens dos pescadores de um barco para o outro. Umas vezes ficavam apreensivos em noite de temporal, outras riam-se à gargalhada com os palavrões ou os pontapés na gramática que davam. Antes de desligar o aparelho o avô dava a noite por encerrada com uma interjeição que o fazia rir desde pequeno. Olhava para ele do cimo dos seus fartos bigodes brancos e dizia a palavra mágica: “Trolaró Dumdum”. Esse era o toque de recolher.
Quando “M” cresceu continuou a viver na mesma casa do avô após a sua morte. Por lá casou e teve os seus filhos. O rádio das ondas curtas manteve-se no escritório e em funcionamento mas um dia “M” decidiu que queria mais. Lembrou-se então de adquirir o equipamento necessário para se tornar radioamador. Assim, as suas noites passaram a ser de microfone na mão e ouvido à escuta de um hipotético interlocutor. Deu-se o nome pomposo de Águia 30 e com esse indicativo perscrutava o infinito, convidando alguém a sentar-se na sua sala para dois dedos de conversa. Só que, por insuficiência técnica, por incapacidade da aparelhagem ou aselhice do dono, o certo é que nunca ninguém respondia aos chamados de Águia 30. O tempo foi passando, os filhos foram crescendo e… nada. “M” envelhecia alegremente mas não desistia. Todas as noites, religiosamente, lá estava ele agarrado ao microfone: “ Alô. Aqui Águia 30, escuto!” E a escuta prolongava-se sem que ninguém se dignasse responder. Os netos baptizavam-no de “águia sem retorno”, a mulher deixou de ligar, limitando-se a servir-lhe um chá entes de se ir deitar. Para não dar o tempo por perdido, “M” voltava a ligar de vez em quando o aparelho de ondas curtas. Uma das sessões mais animadas tinha sido numa noite de Verão em que tinha conseguido interceptar as comunicações dos bombeiros num incêndio na serra. Ficou até de manhãzinha atento pois o fogo poderia alastrar até perto de onde vivia. Felizmente não foi assim. Noutra noite, quando já tinha pontapeado devidamente o equipamento de radioamador resolveu mostrar o outro aparelho ao neto mais velho. Ficaram ali algum tempo até terminarem nos pescadores. Depois o neto foi-se deitar e “M” continuou à escuta. Estava meio adormecido quando julgo ouvir de um dos barcos uma interjeição familiar. “Trolaró Dumdum” Abriu os olhos meio aparvalhado. Seria mesmo aquela comunicação que ele teria ouvido??
Na manhã seguinte a mulher de “M”encontrou-o virado para o mar, sentado no cadeirão do escritório com o rádio de onda curta ligado. Parecia estar a dormir embora o seu coração já não batesse. O rosto tinha uma expressão tranquila, sinal de ausência de dor. Apagou o rádio e ficou ali por uns instantes a fazer-lhe festas no cabelo enquanto observava pela janela o lindo dia de Sol a erguer-se sobre o mar.

ARTUR

2 comentários:

Clarice disse...

Há uma ideia infinita de mar como se fosse a própria vida... onde até a morte parece tranquila, ausente de dor...

*belas imagens, em palavras!

Artur Guilherme Carvalho disse...

O Mar, sempre o Mar. Obrigado pela visita Clarice