quarta-feira, 29 de abril de 2009

“J” E OS JOGOS

J era um homem que no passado tinha tido grandes projectos e ambições na sua área de trabalho. Umas vezes por culpa sua, outras por razões completamente exteriores à sua vontade, a maior parte dos seus projectos acabou por não se concretizar. Umas vezes por rasteiras invejosas, outras por inércias gigantescas, outras ainda por razões do dever, da obrigação distribuída por uma série de pressupostos que de comum tinham o facto de ignorarem a vontade dele. Tinha chegado do médico com uma série de advertências em relação aos cafés, cigarros, álcool e um sem fim de restrições em forma de aviso cardíaco. “Bardamerda” – pensou, enquanto abanava a cabeça afirmativamente ao senhor de bata branca muito sério e antecipador de males. – Preservar a vida porquê? Será que habito num Paraíso cujo único problema é o de não se dar a conhecer em dia nenhum? Continuar a carregar pedras em nome de quê? Da imperfeição humana que dá mais dores do que um par de coices de mula furiosa? Da inexorável marcha degradante do corpo no plano inclinado do fim? Da insistência absurda da espécie em se manter animalesca mesmo na presença da sua finitude? Da repetição dos erros com a memória deles? Bardamerda.
Sabia que tinha mais um projecto para concluir mas desleixava-se voluntariamente com ele. Talvez fosse já uma das medidas encontradas de combate ao stress. Sentava-se à frente do computador, abria o documento em questão, lia-o durante alguns minutos e devolvia-o ao arquivo. A seguir vasculhava a prateleira dos jogos e escolhia um. Cartas, As Cruzadas, Soldados perdidos em floresta asiática, aviões supersónicos em missão sobre as águas do Golfo. Nessa altura vivia intensamente a fantasia em que mergulhava. Vociferava contra a batota da banca em ter baralhado mal as cartas, vibrava com a tomada de Jerusalém, cansava-se na corrida virtual pela selva à procura do esconderijo ideal que despistava os seus perseguidores, ficava triste por ter sido abatido por radares inimigos ao largo de Tripoli.
Esta era a sua vibração. Um mundo virtual mas tão intenso que o fazia voltar à vida, renascer emoções genuínas após a sua entrada. Muito mais que um filme ou um livro. Era despido de si e do mundo que o rodeava que "J" se sentia vivo, sem obrigações nem culpas. Ele já não era ele nem o outro. A sua mente transportava-se para um ecran de vários milhares de “pixels” para se transformar num elemento integrado do mundo que escolhia numa prateleira de CD’s.
Para trás deixava a vontade, a frustração, as dores e qualquer tipo de elemento de contrariedade. Aos poucos “J” já não era “J”, mas qualquer coisa entre a imaginação e a alienação mental. O seu destino estava traçado como traçados estavam todos os destinos de quem alguma vez se atreveu a estar vivo. As suas costas vergavam com o peso das dores e tristezas que lhe caíam em cima como condenações por delito de existência. Os seus dias no trabalho eram acções mecanizadas, o estritamente necessário para não morrer de fome e não dormir ao relento. Até o sorriso era mecânico, de acordo com as formalidades comportamentais. Em casa libertava-se em frente aos jogos, escolhendo os cenários, sendo personagem de realidade virtual. Lá fora o planeta e a sua espécie aceleravam os seus rituais de barbaridade e auto-destruição a caminho do fim, sem que nada se interpusesse nessa gigantesca empreitada. “J” estava fora desse jogo. Desistiu de hipotecar a consciência, de alugar a sua boa vontade, de vender os poucos valores que lhe restavam. Era praticamente nada. Um “nada” com um projecto ainda por acabar que acabaria quando lhe viesse a vontade de o fazer. Até lá projectava a mente para dentro de mundos inventados na esperança que nesse último reduto se pudesse encontrar alguma das migalhas da eternidade.

ARTUR

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