A. sentou-se ao computador assim que chegou a casa. A conversa com a médica no hospital não trazia nada de tranquilizante, se é que alguma tranquilidade se pode receber nesse espaço e a falar com médicos… A tensão arterial, coiso e tal, e põe-te a pau com a escrita antes que a escrita te dê com o pau a ti. Enquanto ligava a máquina e ouvia os zumbidos de arranque julgou ver um vulto parecido com um motorista ou um par de olhos a espreitar pela dobra da persiana ou uma imagem de si mesmo reflectida no espelho da consciência… definitivamente qualquer coisa que o observava. Não fez caso e começou a dedilhar mais um texto, indiferente a todos os acontecimentos daquele dia. A hora era solene e o tempo pedia reflexão, balanço, contas a acertar. Mas a Matemática nunca tinha sido o seu forte e a Contabilidade uma actividade que o assombrava mais do que a própria morte. Arrancou com o texto vendo as frases desenharem-se sem esforço, as ideias espraiarem-se sem pressa, o pensamento a navegar em mar calmo. Mais uma vez tentava dizer aquilo que pensava, tentava comunicar aos outros as suas breves apreciações, marcando com as palavras os espaços da sua observação. Era assim desde que se conhecia. Pensamentos, histórias, enredos estruturados entre personagens inventados que ganhavam vida própria à medida que corriam pelos corredores da narrativa. Fez uma pausa para reler o que tinha escrito. Do canto da sala reparou outra vez num homem vestido de motorista, daqueles à moda antiga com boné e luvas como se viam nos filmes dos anos 20. Olhou para ele e sorriu. “Vens-me buscar ou estás aí só para me avisar?” – pensou para si mesmo.
A hora pedia balanço mas isso era o que menos lhe interessava. A frase mais adequada ao momento seria: “Puta que pariu! A mim, à Vida, à Morte e a este Caos irremediável que todos andamos a construir em cada dia.” Há uns anos atrás teria siso capaz de entrar, não em balanços, mas em negociações. Diria que precisava de mais algum tempo até conseguir escrever mais um ou dois romances. Agora, não. Era-lhe completamente indiferente que escrevesse mais um, ou nenhum. Estava cansado. Não era só o coração que lho dizia, era a própria Vida a fazer o balanço de si mesma. Não voltaria a regatear mais tempo porque sabia perfeitamente que o tempo que viesse seria exactamente igual ao tempo que já tinha sido. Uma série interminável de portas fechadas, desencontros, equívocos, contratempos de tornar o “quase” numa analogia de impossibilidade permanente. Vivia num país miserável povoado de gente mesquinha e ignorante, orgulhosa da sua ignorância, cuja actividade principal era massajar, enaltecer e impor o seu Ego como numa guerra onde as principais armas eram a inveja, a intriga e a troca de favores. Tinha nascido numa família onde nunca tinha conseguido encaixar. Por culpa de ninguém, por razão nenhuma. Foi como foi. Como é a Vida e a Morte. Tudo acaba? Pois acaba, e ainda bem, porque há durações que mais não são do que infernos permanentes com muito poucas pausas para descansar. Olhou outra vez para o motorista: “ Diz ao teu patrão que não há mais negociações da minha parte. Estou pronto. Quando ele quiser, que venha.”
Voltou ao texto com a sensação de ter visto o motorista retirar-se, provavelmente levando consigo alguma coisa para transmitir ao patrão, à empresa de transportes ou aos avisos do corpo. As frases continuaram a alinhar-se como flores silvestres a decorar um prado na Primavera. Estava a correr bem. Acabou mais dois parágrafos e foi até à cozinha. Abriu a janela e acendeu um cigarro que fumou devagar. Pelo contorno incerto do fumo julgou encontrar um par de olhos que o observavam. Os olhos que ameaçavam lágrimas sofridas. Os olhos da negociação afectiva, da frase “se não fosse por este, se não fosse por aquele…”. Os que cá ficam, os que vão sofrer com a tua ausência. “Vão sofrer exactamente o que eu sofri pelos que já foram - pensou - É a lei da vida e nada o vai alterar.” Lamenta-se que outros sofram por estarmos ausentes mas, morrer é só uma modalidade em que esta cena decorre. Há milhares de maneiras de não estar perto dos que amamos ao longo de uma vida inteira. Porque temos que ir trabalhar, porque estamos cansados, porque está frio, porque não há dinheiro, porque nos chateámos, etc, etc. Não. Definitivamente não podia responder aos olhos que o seguiam com respostas apaziguadoras, palavras de conciliação, sacrifícios que lhes secassem as lágrimas. Mandou-os dar uma volta apagando a beata no cinzeiro. Gostaria muito de lhes ser útil, só que daquela vez, seria útil a si mesmo.
O texto começava agora a aproximar-se do seu término. As variantes encontravam-se nas esquinas da concordância final que lhe daria o tom consequente e a harmonia necessária para poder ser lido. Continuou entusiasmado como sempre ficava quando as frases lhe saíam à vontade do pensamento. Estava cansado mas satisfeito. Olhou para o espelho do fundo do corredor e viu um A. como ele a escrever ao computador. Sorriram um para o outro. Trocaram olhares e pensamentos próprios de dois amigos eternos que sempre se ampararam em todas as falhas do caminho. “Até sempre irmão” – despediu-se A. – a gente um dia vê-se.” As duas imagens deram uma abraço apertado e longo sem tremores nem choradeiras. Como dois guerreiros irmãos na véspera da última batalha.
O texto começou a ficar desfocado, as frases a dançar, o ecran a abrir e a fechar. De repente surgiram pessoas vestidas de branco no lugar das frases agitando instrumentos indecifráveis. Seringas? Desfibrilhadores? Bisturis?
A. nem se preocupou mais em apagar o computador. Fechou os olhos embalado num sorriso tímido e cansado.
ARTUR
3 comentários:
Li este texto com os olhos embaciados...
Muito bonito!
Fiquei a pensar, se por acaso tens ido ao médico??
ADOREI!!
Um beijo, ó mitra!!!
Elsa
Clarice: o riso e o olhar húmido são as melhores prendas de retorno para o criador de um texto. Volta sempre.
Cidadã Elsa.....queres sempre dar uma volta pelos bastidores. Ver o espectáculo na plateia nunca te chega. Entra na equipa e começa a trabalhar porque assim sabes sempre como é que se cozinhou o prato. Num próximo documentário p. ex: Bjs
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