terça-feira, 17 de março de 2009

RUMBLE FISH REVISITED


Uma das muitas razões que me levaram a apaixonar pelo cinema prende-se com a tendência natural com que este se exprime quando escreve aquilo que muitos entendem por Escrita Universal. Em traços gerais, a Escrita Universal é a capacidade que qualquer tipo de linguagem de comunicação consegue alcançar quando se expande muito para lá das fronteiras de uma cultura específica e nos transmite uma narrativa, um relato ou uma história com que a Humanidade em geral se pode identificar. É para esta galeria que aspiraram chegar artistas de todos os tempos e de todas as artes.
No caso do que hoje vos gostaria de contar vou falar de RUMBLE FISH (83), uma das muitas obras-primas de Francis Ford Coppola. Trata-se de um filme em torno da juventude, do crescimento e afirmação e do vazio. Para além de uma banda sonora de eleição (dirigida por Stewart Copeland, o baterista dos Police), conta com um elenco de luxo entre actores veteranos e estreantes: Matt Dillon, Mickey Rourke, Dennis Hopper, Diane Lane, Vincent Spano, Nicholas Cage, Diana Scarwid, Christopher Penn e Tom Waits. O filme deambula entre a memória de uma geração mais velha ( a do “Motorcycle Boy”) e a afirmação de outra recém-chegada às ruas de uma cidade sem nome. As drogas e a guerra entre “gangs” havia dizimado a primeira deixando um espaço vazio e impossível de preencher pelos mais novos. É nesta ambiguidade de identificação e vazio que Rusty tenta (sem êxito) viver à altura da lenda do irmão, o rapaz da motorizada. E se o primeiro nunca consegue viver ao nível da lenda, o segundo ao regressar, não consegue gerir a sua própria existência. Fica como que meio isolado, autista de si mesmo e da realidade circundante. A comunicação entre eles é difícil e os equívocos acumulam-se até à constatação do vazio.
No meu bairro passaram-se situações semelhantes. Os nossos irmãos ou primos mais velhos foram marcados pelo fim da guerra colonial e pelos anos que se seguiram ao 25 de Abril. Quando chegou a nossa vez de deambular pelas ruas já os confrontos políticos e os ácidos tinham cozido a cabeça a muita gente. Ouviam-se os Pink Floyd e os Génesis mas por osmose familiar. Já não eram a nossa cena.. se é que alguma vez alguma cena foi nossa. Havia dois casos flagrantes acerca do que referi atrás. O Luisinho, que tinha ficado preso um ano em Marrocos e que só regressou porque o pai dele moveu céus e terra para o libertar, acabando mesmo por viajar para lá e trazê-lo de volta. O Luisinho que voltou, nunca mais foi o mesmo. Era uma sombra da alegria e da vivacidade de outros tempos. Trabalhou com o pai uns anos e, talvez nos idos de 80, acabou por se suicidar. O outro exemplo foi o do Fernando. O Fernando era um herói para os putos como nós. Foi o primeiro tipo a ter uma Kawasaky 750 no bairro. O seu rasto nas ruas era como o de um cometa ruidoso e fugitivo que nos deixava o coração a bater e a saliva a cair sozinha pela boca abaixo. A vida do Fernando era festas, gajas, drogas e porrada com pequenos intervalos para dormir. Andava com um grupo de motoqueiros enormes vestidos de cabedal até aos pés, sempre à espreita de uma desculpa para partir as trombas a alguém. Um dia numa festa o Fernando meteu um ácido estragado que lhe afectou o cérebro. Esteve ainda em coma no hospital uns tempos até que voltou a bairro. Não morreu mas nunca mais foi capaz de ser autónomo ou sequer de articular um discurso coerente. Por lá anda ainda hoje, não chateia ninguém, não faz nada. Vive com os pais e considera-se embaixador de uma distante civilização de extraterrestres que ocasionalmente visitam o nosso planeta.
Nós, miudagem ao pé destas lendas vivas, cedo quisemos também tropeçar pelas escadas do crescimento. Com algumas lições aprendidas (quase ninguém tomava ácidos) embora com muito pouco tempo para lhes dar a atenção devida. A política tinha entrado nos seus eixos rotineiros obrigando os seguidores de cada tendência a exibir um comportamento e uma disciplina seguidista, coisa que, tirando as devidas e minoritárias excepções, pouco nos interessava. Havia uma nova cultura musical, jogos de bola às tantas da noite no largo da igreja, as nossas festas, a nossa droga e… inevitavelmente, tinha que haver porrada. Era uma necessidade tão evidente como o turbilhão hormonal que nos assaltava a toda a hora em sucessivas vagas não saciadas. No bairro formavam-se unidades de combate cujo critério de formação era baseado no café em que cada grupo se encontrava. Desta forma o bairro tinha tantos gangs como cafés disponíveis. É claro que muitas sessões de porradaria colectiva nem chegavam a acontecer de facto. Ou porque um gajo de um lado namorava com a irmã de outro gajo do outro, ou porque dois elementos de lados opostos se conheciam e tinham estudado juntos na mesma turma, ou porque no meio da preparação, os combates (invariavelmente no largo da igreja) eram dramaticamente interrompidos por milícias de dois ou três gajos do Casal Ventoso que nos caiam em cima e nos obrigavam a juntar forças para resistir ao massacre.
Uma tarde de Maio, um grupo de um dos cafés decidiu ir à procura de um tipo de outro bando, que costumava parar do outro lado do jardim. Havia umas contas para ajustar sobre não sei o quê que disse ou fez, as coisas nunca precisavam de grandes justificações quando se tratava de exercitar o “cabedal” em cima de alguém. Vai daí, arrancam dez “monos”, atravessam o jardim e entram de forma triunfante no outro café qual parada da vitória de legião romana em Roma no fim de uma campanha. O “Pencas” ia à frente. Àquela hora o café estava cheio de possíveis inimigos. Avós e netos, domésticas e um sem fim de malandragem. Perante aquela invasão que bloqueou a saída todos se calaram. O dono do café, que nos conhecia a todos desde miúdos, saiu de trás do balcão para se inteirar da situação. Altivo e com uma barra de ferro na mão, o “Pencas” disparou:
- Tá aí o “Carga d’Ossos”? – ao que o senhor Xavier respondeu negativamente. Sem mais demoras o “Pencas” fez um sinal com a cabeça para os outros. Três deles saíram então e dirigiram-se à cave do estabelecimento, onde funcionavam três mesas de matraquilhos. Conforme desceram, voltaram a subir. Viraram-se para o chefe da banda.
- Não tá ninguém lá em baixo. – o outro ficou pensativo por instantes sem saber bem o que fazer a seguir. O senhor Xavier, mantendo uma postura heróica ou de desprezo conforme o ângulo de visão, voltou a fazer-se ouvir.
- Já te disse que não está cá nenhum “Carga d’Ossos” por isso acho melhor que vocês se ponham a andar a não ser que queiram que eu chame a policia. – Para não perder a autoridade e como toda a população do café concentrasse a sua atenção nele, o “Pencas” teve que manter a atitude. Virou-se para o senhor Xavier.
- Não quero saber… Hoje há alguém que vai ter que ser aviado!!
The Motorcycle Boy Reigns….

2 comentários:

redjan disse...

Tenho comentado e blogado pouco Art ... mas este teu canto é assim tipo ... sagrado ... onde TUDO sai a gosto.... de ler e ter e guardar...

Escreves como leio .... com bocados de olhar a vida!

Artur Guilherme Carvalho disse...

A chave deste blog já te pertence há muito tempo...para aí desde o primeiro post. Por isso, vem quando te apetecer e serve-te à vontade de café e cigarros. És sempre bem vindo. 1 abraço