sexta-feira, 20 de março de 2009

IRMÃ

A primeira vez que reparei em ti a sério ainda usavas fraldas embora já andasses. Lembro-me que foi numa tarde de Verão na cozinha da avó, e de um pacote de bolachas Maria. Estava a comer quando te vi entrar. Olhei para ti. – Queres uma? – Sabendo perfeitamente que dispunhas ainda de um vocabulário limitado que não chegava às dez palavras. Por isso fiquei surpreendido quando te vi abanar a cabeça em forma de “sim”. Dei-te a bolacha e fiquei a ver-te olhar para ela em pose de investigação. Depois da primeira dentada reparei que as tuas ancas se movimentavam para a frente a para trás fazendo abanar o tronco, como se de uma dança se tratasse. A bolacha desapareceu num instante, tal como a dança. Ficaste a olhar para mim que me refazia ainda do breve espectáculo de expressão corporal. Estendi-te outra. A mesma coisa. Observação, mastigação e dança. Nessa tarde demos cabo de um pacote inteiro para grande galhofa minha de ver aquele pequenino ser a agir como um boneco a pilhas que, em vez de ser accionado com uma moeda, funcionava a bolachas.
O tempo continuou os nossos dias, a maior parte das vezes convertido num campo de batalha onde cada um contabilizava as suas vitórias e derrotas. Tu desafiavas o mais velho e eu impunha a disciplina e a ordem na hierarquia da nossa geração. O Paulo veio depois e, ou por ser demasiado calmo, ou demasiado pequeno, nunca figurou nas nossas disputas territoriais. Quando chegava vinha normalmente acompanhado da Mãe, de chucha na boca e olhar muito atento, tudo factores de um mundo diferente, um mundo que não era o nosso. Lembro-me daquela ideia maluca que tivemos de o pôr a pedir numa esquina quando ele tinha três anos. Estendia a mão durante 15 minutos e havia pastilhas para o resto da semana. Não fora uma vizinha intrometida ter passado e reconhecido o Paulo e tudo tinha corrido na perfeição. Em vez disso as pastilhas ficaram um pouco além da despesa inicialmente prevista. Uma corrida à frente do Pai a caminho do infinito e a assinatura da mão dele nos nossos rabos.
No dia em que fui para a tropa não quis despedidas (toda a gente sabe que não gosto de despedidas) por isso fiquei surpreendido quando te vi a correr pela estação fora à minha procura. Deste-me um beijo e uma K7 dos Whitesnake com um sorriso. “Para não perderes o juízo e não te esqueceres quem és!” Lembras-te? Nunca mais me esqueci desse momento, nem das inúmeras estaladas que dávamos um ao outro em ambiente de festa. A nossa “guerra” era tão forte que até os nossos pais desistiram de intervir ou sequer de a tentar compreender. Foi o melhor que fizeram.
Anos mais tarde dizias-me que estavas muito triste. Ia haver um concerto dos Siouxie and The Banshees no dia seguinte e tu não podias ir. Não sei se porque o Pai te proibiu ou se tinhas um exame importante que te obrigava a estudar. Sei que, nunca tendo sido grande apreciador da banda, resolvi ir lá com um gravador pequeno no bolso. A gravação deve ter ficado uma lástima, mas tu não te queixaste.
Hoje há alturas em que me distraio com o tempo em que vivo e me apetece ir à dispensa da avó e tirar um pacote de bolachas na esperança de te ver entrar atrás de mim com uma fralda. Depois imagino os teus dentes a cerrarem-se na minha direcção com uma mão rápida a caminho da minha cara e corro. Corro até me doerem os pulmões pelo espaço que ocupámos em rituais de irmãos, indiferente ao cansaço da memória ou à tristeza do tempo que não volta. Corro para não me perder recordando os que amo, únicos testemunhos de mim próprio. O tempo não pára nem consegue matar as memórias. Serve-me um pouco de recordação com duas pedras de gelo e deixa-me flutuar, passear à beira do mar ao fim da tarde. Quem me dera que a vida que vivemos tivesse sido a vida que tivemos porque não a troco por nenhuma outra.
A que propósito vem tudo isto? Apeteceu-me lembrar-te o quanto te amo e, à falta de bolachas, brindo-te com palavras. Porque te amo…irmã.

ARTUR

10 comentários:

Carlos Lopes disse...

Em grande, amigo! Em grande.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Este (texto) saíu-me pela porta fora sem ter tido tempo de lhe dar os acabamentos finais. Paciência, agora é com ele. Um abraço Carlos. Obrigado.

elbett disse...

Hoje tive mesmo pena de não ter tido um irmão... Que bonito!!!Deves ser mesmo o orgulho da tua mana!!!
Lindo!!
Elsa

Clarice disse...

Dizer aos outros o quanto se gosta deles, pois... assim, é raro eu encontrar!

Sabes Artur, hoje apetecia-me ser tua irmã...

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Elsa e Sandra. Continuem a aparecer por aqui e não se inibam de deixar mensagens sempre que vos apetecer.

Clarice disse...

Sandra? (até olhei para trás... podia estar alguém colado a mim, neste caso, uma Sandra...:)))

Nunca ninguém me tinha chamado Sandra:)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Peço desculpa, Clarice. Devo ter tido uma "branca" sem dar por nada. Onde é que eu fui buscar a Sandra é que eu gostava de saber. Fica a rectificação.

Clarice disse...

Gregório: ai, peço desculpa, Artur:)
...e eu estava só a brincar, com a tua troca;)

elbett disse...

Eu leio-te sempre. É uma janela que eu gosto de abrir!! Apanho sempre uma "brain storm"( a chamada tempestade cerebral!!Eheh!)!
Desta vez tocaste-me "naialma", por isso o "comment"!
bjos

Artur Guilherme Carvalho disse...

Xavala Elsa,
Manda sempre, visita sempre e deixa mensagem sempre. Abraços ao Marco e beijos à criançada.