domingo, 4 de janeiro de 2009

CRÓNICAS FASSBINDER III


Mantendo quase inalterável a sua equipa, R.F. rodeava-se de um núcleo de actores (Hanna Schygulla e Ute Lamprecht entre outros) que transformaram as rodagens dos filmes num trabalho familiar. Homosexual e consumidor de drogas assumido, R.F. seguiu o caminho da vertigem até ao limite do trilho, até à morte. A tentativa de compreensão do crime, as transgressões dos comportamentos sexuais e uma certa estética do “rasca”, constituem-se em instrumentos de trabalho na sua obra. Fazendo um cinema de vanguarda sempre minoritário foi revelando uma parada de personagens recrutadas na fina-flor da marginalidade; prostitutas, homossexuais (femininos e masculinos), impotentes, travestis, bêbados, drogados, terroristas, maridos enganados. No fundo acabou por se tornar um exemplo expressivo da época ainda hoje marcada pela ambiguidade e ambivalência, pela náusea e pelo grito, onde os fascistas se confundem com os terroristas, as lésbicas com os homosexuais, os chulos falocratas com os agentes da Lei e o Poder com o Mal. Máscaras a um tempo complacentes e dolorosas. Como ferramenta de trabalho, a marginalidade, longe de ser escolhida como alternativa figurativa da sociedade instituída, não passou de um pretexto. De facto, ao representar a marginalidade, em vez de exibir heróis, R.F. retrata a imbecilidade humana através do egoísmo e da satisfação mediática que influenciam e condicionam as nossas vidas. Por isso foi inconveniente, por isso foi maldito. Por isso também, as relações do poder estão tão bem documentadas na temática dos seus filmes. R.F. filma os homosexuais burgueses mais esclarecidos, os trabalhadores emigrados perseguidos pelos trabalhadores nativos, os marginais marginalizados, as mulheres submetidas pelos homens, os homens possuídos pelas mulheres, os homens traídos pelos homens, os empregados explorados pelos patrões, os filhos subjugados pelos pais…
As relações sociais e a emocionalidade delas emergente desfilam em cada cena com a força esmagadora de quem, não nos querendo ensinar nada, simplesmente nos convida a melhor sabermos quem somos. Assumindo como dado adquirido o omnipresente lado mau da nossa consciência, Rainer Fassbinder parte dessa absoluta necessidade de o dar a sentir para que uma incómoda e nauseante vontade de crime e expiação tenha lugar. O Mal é parte integrante do Homem, que o pratica como qualquer outro acto quotidiano, e a sua erradicação só se torna possível através de um complexo processo de paixão auto-contemplativa que passará forçosamente pela prática de actos moralmente negativos. Para que a expiação e, consequentemente, a libertação, possam ocorrer. Ou, dito nas suas próprias palavras: “Provavelmente é preciso atravessar o inferno para se conseguir chegar a um mundo melhor…”

Artur Guilherme Carvalho

1 comentário:

Anónimo disse...
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