segunda-feira, 26 de janeiro de 2009
ARQUIPÉLAGOS E INSÓNIAS
Ler um livro de António Lobo Antunes (ALA) é como iniciar uma aventura que nunca sabemos como acaba. Entra-se num espaço aparentemente escuro, aparentemente aberto a várias correntes de ar por onde passam várias vozes que se vão atropelando, insistentes em contar a sua história aos pedaços, explicar as suas sensações fragmentadas em frases que se interrompem suspensas nas pausas gráficas de uma linha caótica. Ouvem-se ecos, vêm-se imagens desfocadas, incompletas, ficando-se com a sensação de faltar algo para a explicação total. As palavras desenham estilhaços de vida que só em hipótese serão capazes de se combinar em breves harmonias. Para o leitor comum tudo no início o repele como uma força centrífuga, tudo o quer rejeitar se não se colocar sem reservas à procura, ou melhor dizendo, à descoberta de um espaço equipado de vida e lógica própria. Uma demanda que pode durar todo o livro, teste de resistência à capacidade e à paciência de cada um. Os livros de ALA conseguem-se entender a uma distância considerável, algum tempo depois de lidos, tal é o grau de abstracção e significação directa do desenho das suas palavras. Trata-se de algo diferente de Literatura. Algo que se consegue definir entre a Filologia e o Caos emocional, pequenos universos fechados sobre si onde quem define as regras não se mostra e quem as executa se apresenta sob a forma de sombra, de uma segunda imagem da original.
Lembrar-se-ão alguns de James Joyce e da sua tentativa de escrever ao ritmo da consciência, sem regras nem sequências, uma comporta que se precipita sobre o papel numa enxurrada absoluta e esmagadora. A figura do streamthought na qual Joyce se afasta da Literatura para se aproximar da Filologia ( ex. “Finnegan’s Wake”) e que não deixou continuadores situa-se no campo experimental, naquele espaço em que a Forma se trabalha em termos até aí nunca tentados. No caso de ALA, embora sejam notórias as semelhanças com Joyce, o que se verifica é que o progressivo afastamento de um modelo literário vai-se transformando na construção Filológica Emocional de um universo, o do autor, dos seus fantasmas, ansiedades, medos e delírios.
A obra de ALA não se pode esgotar no entanto no trabalho único e exemplar de destruição e reconstrução das fronteiras da Forma no discurso escrito. Ela é extremamente importante e decisiva na Literatura Portuguesa da segunda metade do século passado na medida em que constitui a radiografia imprescindível ao Inconsciente Colectivo português daquela época. E essa é a porta de entrada para os livros de hoje. Marcas incontornáveis como “Os Cus de Judas”, “Explicação dos Pássaros”, “Auto dos Danados” ou “Fado Alexandrino” constituem a parte essencial do álbum fotográfico de um país que em trinta anos viveu uma guerra, mudou de regime político, reinventou o seu espaço de império colonial para um país europeu, com todas as consequências que este tipo de mudanças violentas pode provocar nas pessoas.
Ler ALA é uma viagem atribulada como atribuladas são as vidas em geral. Por mais que queiramos abarcar o sentido da vida nunca o conseguiremos na plenitude e mesmo algumas certezas que alcançamos, só o são temporariamente. Por mais que queiramos racionalizar, tornar harmonioso, construir uma linha coerente de existência, a nossa tendência para o caos, a ditadura dos instintos e a sede eterna de amor vence e perde num campeonato que só terminará com a morte. De certo não temos nada. Só o eco de uma voz perdida que insiste em contar aspectos da sua história ou imagens incompletas e desfocadas a que nos agarramos como referências que nos evitam o afogamento imediato. Frases que ficam suspensas como os dias, correntes de ar por onde vozes gritam. Difícil? Não acho. Os livros de ALA acabam por ser retratos dos nossos dias. É a proximidade familiar que às vezes nos impede de o reconhecer.
ARTUR
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6 comentários:
Muito bem, Artur. E mais dia menos dia vem aí mais outro...
Um abraço antuniano!
F.....se Carlos. 'Tava aqui sozinho no alto da montanha a uivar e tinha a sensação nítida que ninguém me estava a ouvir. Ainda bem que apareceste. Senta-te e bebe um copo. Um abraço
ARTUR
Artur, acho que nunca tinha ouvido de ninguém uma explicação tão real, tão próxima, do que se sente ao ler António Lobo Antunes.
A da minha mãe também é bastante válida, continua a ler ALA aos 76 anos, diz que o adora, que o entende, mas que sente uma enorme dificuldade em relatar o que está a acontecer... eu acho que é isso exactamente que se passa às vezes na vida, estamos a "ler cada palavra", de tão perto , que só a uma distância razoável a conseguimos "dizer"...
Isto está muito confuso acho que não me estou a conseguir explicar...
Mas fica sabendo que não estás a uivar à toa aí em cima dessa montanha... há quem te leia em silêncio e até a uma certa distância...
Boa Malha (já cá faltava esta!:))
Ora seja bem vinda minha boa amiga. De facto é extremamente difícil verbalizar os livros do Mestre. Eles no entanto adquirem contornos de uma outra dimensão que trnscende a simples leitura. As palavras respiram, as frases ganham vida própria e a barafunda de entradas e saídas de personagens não ajuda. No entanto, há uma linha em todos eles que se conquista como quem sobe a montanha. Será qualquer coisa mas já não é Literatura.Volta sempre.
ARTUR
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