segunda-feira, 11 de março de 2013

PASSAGEM PELA BEIRA BAIXA



Perdida nas serras da Beira Baixa entre a Sertã, Proença-a-Nova e Cardigos, a aldeia que se avista no vale lá em baixo desde o Cabeço da Porca, entre pinhais e riachos, foi testemunha de um amor rebelde que vingaria contra todos os obstáculos, numa afronta desafiadora aos costumes e tradições de uma comunidade fechada e parada no tempo.

Estava-se no final dos anos 20 e em quase todos os cumes das serras em redor, verdes de tanto pinheiro bravo, sobressaiam pequenos marcos brancos, cujas velas prenhes de vento acenavam ostensivamente o poder daquela família que monopolizara anos antes, no início do século XX, a moagem de todos os cereais produzidos na região. O ranger das rodas de madeira das azenhas misturado com o som da água corrente da Isna, uma ribeira que ao longo de muitos quilómetros rasga o leito rochoso, em sucessivas cascatas e curvas hesitantes para desaguar no Zêzere, também não tinha escapado ao poder crescente do Silva “Moleiro”.

Valorizava-se o trabalho e o respeito pelo respectivo lugar na hierarquia social, até quando toda a comunidade profundamente católica se reunia aos domingos na pequena igreja, aí entrando com a segunda chamada sineira ecoada por montes e vales, distribuindo-se nos lugares conforme o seu estatuto. Separados pelo corredor central, homens de um lado, mulheres e raparigas do outro. Os mais remediados à frente, os menos a seguir, vestidos com a melhor roupa depois de seis dias de trabalho nas terras e nos pinhais, lavados da poeira e suor semanal. Cristo pregado na cruz lá no altar. Nos dois corredores laterais havia cadeiras com placas identificadoras dos donos em madeira trabalhada, com os apoios para a genuflexão forrados a veludo vermelho, propriedade dos mais abastados que assim tinham um lugar cativo mais junto ao Senhor. A miudagem e a rapaziada cá atrás de pé, mais a jeito para se pôr porta fora no adro logo que a cerimónia dominical findasse. Em toda a comunidade haviam apenas um ou dois proscritos que no torpor da sua bebedeira constante, achavam que ficar cá fora era mais compensador, quanto mais não fosse para curar a dor de cabeça e mau estar geral que voltariam irremediavelmente a procurar lá mais para a tarde, alienando-se daquela realidade enquanto tivessem alguns tostões que não os obrigasse a agarrar numa enxada.

As ruas com tapetes de carqueja, cíclica e zelosamente renovados pelos moradores minimizavam o pó no Verão e a lama no Inverno.No entanto o largo da igreja, por ser um local de convívio todas as tardes de domingo, era mantido com uma impecável superfície de terra batida. De que outro modo poderia ser senão deste, para as gerações masculinas se juntarem e passarem longas horas a jogar chinquilho? A assistência era composta pelos mais novos que admiravam a pontaria e aprendiam a técnica, e pelos mais velhos que agarrados aos seus queijados e sentados nos muros de xisto, maldiziam os falhanços dos jogadores, cujo arremesso da malha volta e meia teimava em não tocar na estaca de madeira, na recalcada frustração dos seus próprios movimentos tolhidos pelo tempo que já só lhes dava liberdade suficiente para se arrastarem até ao muro de pedra onde descansavam os ossos e libertavam a língua.

Sebastião, rapaz de cabelo e olhos claros, nascido de família modesta, de pai carpinteiro que se dedicava ao cultivo, à apicultura e ao pastoreio de cabras, fascinara-se pela morgada da região, a filha mais velha da abastada família do Silva “Moleiro”, dona de todos os moinhos e azenhas. Sentia que era recíproco pela troca de olhares que todos os rapazes iam ensaiando com as moças casadoiras que em grupos iam passando pelo adro da igreja, interrompendo a tempos o arremesso das bolachas de metal. As suas origens modestas e a sua humildade pouco mais lhe permitia do que observar e esperar, mas poucas dúvidas lhe restavam que aquela morena alta e elegante tinha reparado nele mais do que uma vez.

Ficou a incerteza dissipada quando um dia enchendo-se de coragem lhe foi falar e se tomou pela avassaladora incredulidade por uma das raparigas mais cobiçadas da região admitir que gostava de si. Tê-lo ela escolhido para um improvável namoro que ia contra o preconceito social da comunidade, e muito mais da família dela que jamais aceitaria que a sua herdeira desperdiçasse a mão num remediado, em vez dum futuro promissor e investidor de estatuto social ao lado de um doutor ou engenheiro, abria um precipício vertiginoso ao qual era impossível escapar.

Entretanto e interrompendo os encontros escondidos, iria Sebastião para a tropa onde aprofundaria e aperfeiçoaria os conhecimentos e habilidade para a carpintaria, cuja arte já tinha aprendido desde bem cedo com o pai.
No sonho de ficarem juntos, e pela recusa petrificada de tudo e todos aceitarem a sua união de puro amor, quando Sebastião terminou o serviço militar, Maria do Carmo num irreprimível impulso fugiu de casa e da família e foi para Lisboa ter com ele. Em resultado do escândalo por alguém assumir frontalmente o seu amor contra tudo e contra todos, numa época em que isso era completamente intolerável, seria o casal censurado, proclamado vergonha da comunidade, devendo ser por isso banido e esquecido.

Teriam de começar do rascunho na grande cidade, apoiando-se apenas um no outro e no grande amor que os unia, ganhando batalhas e algum tempo depois em 1936, um filho. Valer-lhes-ia também um engenheiro com ligações à vida militar e dono de uma empresa de construção, que reconhecendo a qualidade do trabalho feito na tropa por Sebastião, lhe ofereceria trabalho garantindo assim um meio de sustento ao jovem casal. Um dos lemas preferidos e repetidos dele era: “O trabalho tudo vence!” Assim iniciaria uma fase de prosperidade constante que lhes permitiria a estabilidade económica.

No final de 1940 seriam de novo pais. Quis o destino que esta segunda gravidez de Maria do Carmo fosse de gémeos, acabando por sobreviver passados dois anos apenas um deles. No meio do desgosto desta perda, voltariam à terra que os tinha escorraçado quando ao cabo de uma década fora e com dinheiro, já não dependeriam de ninguém para aí terem uma vida razoável.

A passagem dos anos tudo amenizara e a família e conhecidos, acabaram por os receber bem de volta, assim como ás notas com que Sebastião pagava a construção de uma grande casa num dos melhores terrenos da aldeia e comprava outros ali à volta, tornando-se assim um dos maiores proprietários, agora considerado como respeitado homem de bem.

Dividia a sua vida entre a aldeia e os sítios para onde o trabalho o mandava, deslocando-se por longas temporadas para obras em Lisboa. Fariam parte da sua lista a ponte pedonal em arco sobre o rio Trancão em Sacavém, a construção da fábrica de celulose do Caima vivendo com a família toda em Albergaria-a-Velha por doze anos, a barragem de Belver, um depósito de água em Málaga, pontes na mata de Leiria. Destas e de outras obras, aquela que provavelmente marcaria a sua vida numa façanha épica, seria também a de mais curta duração - a arrojada e heróica construção do farol nas inóspitas ilhas Formigas nos Açores, em pleno Oceano Atlântico, a meio caminho entre São Miguel e Santa Maria, no recife de Dollabarat, erigindo no Verão de 1948 e apenas em 36 dias, mesmo com algumas paragens por causa do mau tempo, um farol de 19 metros de altura, concluindo-se assim um projecto que já datava de 1883.



Assentariam no final da década de 60, Sebastião e Maria do Carmo ainda com saúde e muitos anos de vida pela frente, na aldeia que muitos anos antes os havia repudiado, dedicando-se definitivamente à agricultura por puro prazer, em afazeres diários nos pinhais a roçar mato e a recolher resina, nos pomares de macieiras, pereiras, pessegueiros, em regas diárias nos terrenos de cultivo entre figueiras, laranjeiras e tangerineiras, nas colmeias recolhendo os favos de mel aproveitando a cera para velas, tratando das galinhas, dos porcos, das cabras e do burro, num equilíbrio cúmplice que duraria quase até aos 90 anos, atravessando ele um pouco atrás dela a derradeira ponte para o outro lado, compensando-a assim pela ousadia a que ela se tinha atrevido quase 70 anos antes.


Hélder

1 comentário:

Antonino Dias disse...

Belo texto e uma história a condizer.
Parabéns.