Perdida nas serras da Beira
Baixa entre a Sertã, Proença-a-Nova e Cardigos, a aldeia que se avista no vale
lá em baixo desde o Cabeço da Porca, entre pinhais e riachos, foi testemunha de
um amor rebelde que vingaria contra todos os obstáculos, numa afronta
desafiadora aos costumes e tradições de uma comunidade fechada e parada no
tempo.
Estava-se no final dos anos 20
e em quase todos os cumes das serras em redor, verdes de tanto pinheiro bravo,
sobressaiam pequenos marcos brancos, cujas velas prenhes de vento acenavam
ostensivamente o poder daquela família que monopolizara anos antes, no início
do século XX, a moagem de todos os cereais produzidos na região. O ranger das
rodas de madeira das azenhas misturado com o som da água corrente da Isna, uma
ribeira que ao longo de muitos quilómetros rasga o leito rochoso, em sucessivas
cascatas e curvas hesitantes para desaguar no Zêzere, também não tinha escapado
ao poder crescente do Silva “Moleiro”.
Valorizava-se o trabalho e o
respeito pelo respectivo lugar na hierarquia social, até quando toda a
comunidade profundamente católica se reunia aos domingos na pequena igreja, aí entrando
com a segunda chamada sineira ecoada por montes e vales, distribuindo-se nos lugares
conforme o seu estatuto. Separados pelo corredor central, homens de um lado, mulheres e raparigas do outro. Os mais remediados à frente, os menos
a seguir, vestidos com a melhor roupa depois de seis dias de trabalho nas
terras e nos pinhais, lavados da poeira e suor semanal. Cristo pregado na cruz lá
no altar. Nos dois corredores laterais havia cadeiras com placas
identificadoras dos donos em madeira trabalhada, com os apoios para a
genuflexão forrados a veludo vermelho, propriedade dos mais abastados que assim
tinham um lugar cativo mais junto ao Senhor. A miudagem e a rapaziada cá atrás
de pé, mais a jeito para se pôr porta fora no adro logo que a cerimónia
dominical findasse. Em toda a comunidade haviam apenas um ou dois proscritos
que no torpor da sua bebedeira constante, achavam que ficar cá fora era mais
compensador, quanto mais não fosse para curar a dor de cabeça e mau estar geral
que voltariam irremediavelmente a procurar lá mais para a tarde, alienando-se
daquela realidade enquanto tivessem alguns tostões que não os obrigasse a
agarrar numa enxada.
As ruas com tapetes de
carqueja, cíclica e zelosamente renovados pelos moradores minimizavam o
pó no Verão e a lama no Inverno.No entanto o largo da igreja, por ser um local de
convívio todas as tardes de domingo, era mantido com uma impecável superfície
de terra batida. De que outro modo poderia ser senão deste, para as gerações
masculinas se juntarem e passarem longas horas a jogar chinquilho? A
assistência era composta pelos mais novos que admiravam a pontaria e aprendiam
a técnica, e pelos mais velhos que agarrados aos seus queijados e sentados nos
muros de xisto, maldiziam os falhanços dos jogadores, cujo arremesso da malha
volta e meia teimava em não tocar na estaca de madeira, na recalcada frustração
dos seus próprios movimentos tolhidos pelo tempo que já só lhes dava liberdade
suficiente para se arrastarem até ao muro de pedra onde descansavam os ossos e
libertavam a língua.
Sebastião, rapaz de cabelo e
olhos claros, nascido de família modesta, de pai carpinteiro que
se dedicava ao cultivo, à apicultura e ao pastoreio de cabras, fascinara-se
pela morgada da região, a filha mais velha da abastada família do Silva
“Moleiro”, dona de todos os moinhos e azenhas. Sentia que era
recíproco pela troca de olhares que todos os rapazes iam ensaiando com as moças
casadoiras que em grupos iam passando pelo adro da igreja, interrompendo a tempos
o arremesso das bolachas de metal. As suas origens modestas e a sua humildade
pouco mais lhe permitia do que observar e esperar, mas poucas dúvidas lhe
restavam que aquela morena alta e elegante tinha reparado nele mais do que uma
vez.
Ficou a incerteza dissipada
quando um dia enchendo-se de coragem lhe foi falar e se tomou pela avassaladora
incredulidade por uma das raparigas mais cobiçadas da região admitir que gostava de si. Tê-lo ela escolhido para um improvável namoro que ia
contra o preconceito social da comunidade, e muito mais da família dela que
jamais aceitaria que a sua herdeira desperdiçasse a mão num remediado, em vez
dum futuro promissor e investidor de estatuto social ao lado de um doutor ou
engenheiro, abria um precipício vertiginoso ao qual era impossível escapar.
Entretanto e interrompendo os encontros escondidos, iria Sebastião para a tropa
onde aprofundaria e aperfeiçoaria os conhecimentos e habilidade para a
carpintaria, cuja arte já tinha aprendido desde bem cedo com o pai.
No sonho de ficarem juntos, e
pela recusa petrificada de tudo e todos aceitarem a sua união de puro amor, quando
Sebastião terminou o serviço militar, Maria do Carmo num irreprimível impulso fugiu
de casa e da família e foi para Lisboa ter com ele. Em resultado do escândalo por alguém assumir frontalmente o seu amor contra tudo e contra todos, numa
época em que isso era completamente intolerável, seria o casal censurado, proclamado
vergonha da comunidade, devendo ser por isso banido e esquecido.
Teriam de começar do rascunho
na grande cidade, apoiando-se apenas um no outro e no grande amor que os unia,
ganhando batalhas e algum tempo depois em 1936, um filho. Valer-lhes-ia também
um engenheiro com ligações à vida militar e dono de uma empresa de construção, que
reconhecendo a qualidade do trabalho feito na tropa por Sebastião, lhe
ofereceria trabalho garantindo assim um meio de sustento ao jovem casal. Um dos
lemas preferidos e repetidos dele era: “O trabalho tudo vence!” Assim iniciaria uma fase de prosperidade constante que lhes permitiria a estabilidade económica.
No final de 1940 seriam de
novo pais. Quis o destino que esta segunda gravidez de Maria do Carmo fosse de
gémeos, acabando por sobreviver passados dois anos apenas um deles. No meio do
desgosto desta perda, voltariam à terra que os tinha escorraçado quando ao cabo
de uma década fora e com dinheiro, já não dependeriam de ninguém
para aí terem uma vida razoável.
A passagem dos anos tudo
amenizara e a família e conhecidos, acabaram por os receber bem de volta, assim
como ás notas com que Sebastião pagava a construção de uma grande casa num dos
melhores terrenos da aldeia e comprava outros ali à volta, tornando-se assim um
dos maiores proprietários, agora considerado como respeitado homem de bem.
Dividia a sua vida entre a
aldeia e os sítios para onde o trabalho o mandava, deslocando-se por longas
temporadas para obras em Lisboa. Fariam parte da sua lista a ponte pedonal em arco sobre o rio Trancão em Sacavém, a construção da fábrica de celulose do Caima
vivendo com a família toda em Albergaria-a-Velha por doze anos, a barragem de
Belver, um depósito de água em Málaga, pontes na mata de Leiria. Destas e de
outras obras, aquela que provavelmente marcaria a sua vida numa façanha épica,
seria também a de mais curta duração - a arrojada e heróica construção do farol
nas inóspitas ilhas Formigas nos Açores, em pleno Oceano Atlântico, a meio
caminho entre São Miguel e Santa Maria, no recife de Dollabarat, erigindo no
Verão de 1948 e apenas em 36 dias, mesmo com algumas paragens por causa do mau
tempo, um farol de 19 metros de altura, concluindo-se assim um projecto que já datava de 1883.
Assentariam no final da década de 60, Sebastião e Maria
do Carmo ainda com saúde e muitos anos de vida pela frente, na aldeia que
muitos anos antes os havia repudiado, dedicando-se definitivamente à
agricultura por puro prazer, em afazeres diários nos pinhais a roçar mato e a
recolher resina, nos pomares de macieiras, pereiras, pessegueiros, em regas
diárias nos terrenos de cultivo entre figueiras, laranjeiras e tangerineiras,
nas colmeias recolhendo os favos de mel aproveitando a cera para velas,
tratando das galinhas, dos porcos, das cabras e do burro, num equilíbrio cúmplice que duraria
quase até aos 90 anos, atravessando ele um pouco atrás dela a derradeira ponte para o outro lado, compensando-a assim pela
ousadia a que ela se tinha atrevido quase 70 anos antes.
Hélder
1 comentário:
Belo texto e uma história a condizer.
Parabéns.
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