quinta-feira, 14 de março de 2013

ANOS 70 - UMA PASSAGEM PARA OUTRO UNIVERSO



O conceito de morte é de difícil compreensão para uma criança com 4 ou 5 anos. Percebe a ideia da ausência. Mas não a possibilidade de uma pessoa que lhe é querida e num momento está ali próxima, sem qualquer aviso, explicação ou despedida desaparecer para um sítio qualquer de onde não voltará mais.

Outra coisa perturbadora nessa idade, é ser literalmente o imperador do universo e de repente ter uma concorrente recém-chegada, que não fala, só chora, come e dorme, exige atenção constante a quem antes era um exclusivo seu e mesmo assim, tão frágil e indefesa, com a absoluta capacidade de lhe roubar o protagonismo, numa evidente e inevitável despromoção a actor secundário, quase a figurante.

Como se a confluência destes dois acontecimentos de morte e nascimento não bastassem para agitar e estilhaçar o seu universo perfeito, vê-se numa onda imparável de novidade a mudar de casa, de ambiente, deixando o conhecido e os portos de abrigo, transportado para outra estranha dimensão paralela.

Nandinho, o "menino da cidade” em poucos meses, tinha perdido um dos melhores e mais chegados amigos, tinha ganho uma irmã concorrente de afectos e atenção, e mudado de casa, dos arredores da capital para uma pequena vila de província vinte quilómetros a norte de Coimbra.

O pai tinha sido promovido profissionalmente, o que implicava a mudança de casa. Essa alteração fazia com que a sua mãe deixasse a sua profissão e os amigos do Cacém, para ficar definitivamente em casa a cuidar dele e da mana bébé.

Aquela convulsão radical na vida dele, também lhe trazia mesmo assim alguns interesses e novidades. A descoberta de uma casa muito maior do que aquela onde ele antes vivia, bastante comprida e com divisões com nomes estranhos nunca ouvidos, como “sótão” ou “barracão”. No sótão o pai tinha colocado um baloiço com acento de madeira, preso por cordas a um grosso tronco de eucalipto que servia de viga e estava assente nas empenas de pedra à vista sustentando o telhado. No barracão, um anexo da casa, havia uma capoeira que lhe proporcionava o primeiro contacto com animais de quinta, as galinhas e os coelhos. Haveria lugar também à adopção de duas gatas irmãs, a arisca Tigre e a carente Rosinha.

A paisagem era diferente. A frente da casa dava para uma rua de paralelepípedos negros bastante movimentada por pessoas a pé, muitas bicicletas, mais motorizadas, carros e camionetes e ás vezes intermináveis rebanhos de cabras e ovelhas. Nas traseiras a vista era para a serra do Buçaco e muito mais longe para a do Caramulo. Ali à volta eram vinhas, campos cultivados e pinhais da zona da Bairrada.

Também as pessoas eram diferentes das que conhecera até aí. Mais duras e secas, dedicadas à agricultura, à frente de burros, vacas e juntas de bois. Uma família de anões vendia leite porta-a-porta na sua carroça puxada por um cavalo castanho de longas crinas numa imagem matinal quase mística.

Teria nos meses anteriores à entrada para a escola primária uma experiência equivalente a uma pequena recruta digna das tropas especiais ao ir para a Casa da Criança, a creche da vila que lhe mostraria definitivamente que ele não era imperador, rei, príncipe ou privilegiado de coisa nenhuma. Lá brincava com miúdos bons, assim-assim e cruéis, que nas mudanças de humores trocavam de personalidades entre si e neles próprios, testando a sua capacidade de sobrevivência em distribuições de estalos e pontapés, complementados pelas cuidadoras que zelosas da ordem infantil, passavam a mão a eito por quem estava ao alcance. A saída à tarde era sempre na companhia de um quarto de pão de alqueire, recheada por grossas fatias de marmelada.

O ponto alto desta experiência conforme a perspectiva que se possa ter, foi a ida para uma colónia balnear infantil no início do Verão, na praia da Barra, onde os escaldões apanhados durante o dia eram refrescados num banho colectivo ao início da noite em que a miudagem nua, na penumbra de poucas fracas lâmpadas e ao ritmo da marcha dos condenados, avançava em fila indiana para duas grandes tinas de alumínio cheias de água e sabão azul. Seria resgatado pelos pais ao terceiro dia não conforme as escrituras, mas por causa da preocupação deles. Nandinho já não existia, era agora Fernando, de recruta feita.

O Zé Malha era um rapaz com 12 ou 13 anos de cabelo espetado, nariz adunco, olhos desfocados perdidos no infinito e boca de balbuciantes lábios finos, normalmente a deixar escorrer um fio de baba. Quando apanhava os miúdos mais pequenos na rua e sem qualquer motivo que não fosse a sua condição mental, parava o vertiginoso rodopio auto-inebriante, de cabeça levantada ao céu e braços erguidos no ar acompanhados por uma incompreensível lengalenga cantada, para lhes aplicar uma portagem de pancadaria. Satisfeito apenas quando ouvia choro, continuava a sua lunática dança pelo meio da rua obrigando à paragem de todos os veículos que com ele se cruzassem. Fernando aprenderia a passar por ele com um salvo-conduto conseguido pela forçada coragem de lhe falar cumprimentando-o, o que confundia o outro pela novidade a que não estava habituado, e com a ajuda da mãe que apanhando o Zé Malha a passar à porta de casa, lhe faria prometer que não tocaria no seu filho. O rapaz cumpriria o prometido. Em compensação brincava com o filho no barracão onde tinha alguns brinquedos à disposição, numa aprendizagem mútua que acabaria por ser muito mais aproveitada por Fernando, ensaiando capacidades diplomáticas com um interlocutor difícil, imprevisível e instável. O outro tinha assim um pouco de paz, enquanto a agitação mental não voltasse e sem aviso desatasse a correr para a rua como se a loucura não pudesse esperar. O resto das pessoas estranhavam e comentavam à boca pequena, como é que alguém se atrevia a pôr um reconhecido diabrete, incontrolável inimigo público, em casa e a brincar com o filho pequeno. Tornar-se-ia esta para Fernando uma primeira lição forçada, inteligentemente engendrada pela mãe, de respeito, tolerância e coexistência.

Uma tarde ouvir-se-iam gritos animalescamente guturais vindos da rua. Era a progenitora do Zé Malha um pouco adiante, com os pés em cima do pescoço dele numa insana tentativa de estrangulamento público, acorrendo algumas pessoas que o salvariam naquele momento. Apareceria algum tempo depois morto dentro de um poço em circunstâncias nunca esclarecidas. Placidamente se assumiu o suicídio.

Julgando já compreender a morte, queria acreditar Fernando que o Zé Malha agora estaria melhor. Bem vestido, lavado, sem fome, sem frio e confortável num abraço de carinho que lhe daria a paz nunca conseguida deste lado.

O Inverno de 1970 tinha sido tão frio que pela primeira vez veria neve lá ao longe na serra do Caramulo coberta pela alvura. Tudo aquilo era sem dúvida nenhuma uma mudança tão profunda, que lhe tinha aberto aos cinco anos a página para o segundo capítulo da sua vida que duraria toda a década de 70.

Hélder

2 comentários:

Artur Guilherme Carvalho disse...

Pelos corredores desta crónica sopram as correntes de ar de Aquilino e de Torga, um Portugal perdido no interior entre a força da terra e a crueza da humanidade campestre. Nada é originalmente absoluto. Somos todos filhos uns dos outros, quem escreve. Boa malha Hélder.

Hélder disse...

Meu Amigo, obrigado pelas tuas palavras. São um bom incentivo mas acho que de Aquilino e de Torga que li em miúdo, exactamente na altura em que me cruzava com o Zé Malha, haverá apenas uma brisa muito ligeira por impossibilidade de me comparar minimamente a esses Mestres. Pode ser que eu desenferruje e a coisa flua melhor... Vou tentar tricotar qualquer coisa mais Artur... Abraço!