segunda-feira, 23 de abril de 2012

O PRIMEIRO HOMEM

Há duas maneiras possíveis de ler “O Primeiro Homem” de Albert Camus, ambas encantadoras. Se já conhecíamos a obra do autor, estamos na presença íntima do seu Ser, como quem conversa com um amigo durante uma noite inteira. Se, por outro lado, pouco ou nada sabíamos dele, este é um excelente ponto de partida para a descoberta do trabalho de um dos maiores pensadores do século XX. Prematuramente desaparecido num acidente de viação em 1960, Camus trazia consigo um manuscrito do seu último romance que, nas suas próprias palavras, versava sobre aqueles que amava. Daí que “O Primeiro Homem” se possa designar numa primeira abordagem como um romance de ternura. Ao escrever sobre aqueles que marcaram os seus primeiros anos de vida, Camus acaba por desenhar alguns dos contornos mais importantes da sua personalidade e da sua obra, apresentando-se a si próprio. Todo o romance é autobiográfico sem alterações de maior na transposição da realidade para a ficção. O percurso de Jacques Cormery, nascido numa noite de Outono de 1913 na planície argelina, pouco ou nada se afasta do percurso do seu autor, Albert Camus, nascido a 7 de Novembro do mesmo ano, num pequeno complexo vitícola próximo de Mandovi na Argélia. O pai, Lucien Camus, Henri Cormery no romance, era descendente de uma família alsaciana que nos finais do séc. XIX integrou os primeiros grupos de colonizadores desembarcados em solo argelino. È precisamente a figura paternal, ou a sua procura (Por ausência? Por ignorância?), a primeira a ser desenvolvida logo após a descrição acidentada do nascimento. Camus foi um entre milhões de órfãos que integraram a herança da I Guerra Mundial. Mobilizado em 1914, Lucien/Henri é ferido na batalha do Marne, vindo a falecer no mesmo ano no hospital improvisado de Saint Brieuc. A morte do pai gera, entre outras, duas passagens marcantes no romance. Numa vamos encontrar a saída clandestina de Henri do seu aquartelamento na noite da véspera da sua partida para França. Sem autorização, Henri beijará os filhos, despedindo-se da família pela ultima vez. Episódio simples, comovente e absoluto, se o soubermos sentir na carne. Ao longo de toda a sua vida, embora Jacques procure saber quem era o seu pai, encontra na mãe uma enorme barreira de palavras vagas, um silêncio de quem nada mais quer ter a ver com o sofrimento passado. Já com 40 anos, quando visita a campa do pai em Saint Brieuc, apercebe-se pela leitura da pedra tumular, de que ele teria morrido com 29 anos. Aí…a vaga de ternura e piedade que de repente lhe encheu o coração não era o movimento de uma alma que conduz o filho à evocação do pai desaparecido, mas a perturbada compaixão que um homem feito experimenta perante a criança injustamente assassinada. O caos tirava lugar à ordem, numa situação em que o pai era mais novo que o filho. Albert Camus visitou a campa do pai pela primeira vez em 1947, tinha então 34 anos. A mãe, Catherine Camus, conserva o seu nome no romance, apesar de ao princípio ser designada por “Lucie”. Oriunda de uma família espanhola de Menorca, os Sintés, é descrita na passagem do nascimento da seguinte forma: …tinha um rosto terno e regular, os cabelos de espanhola bem ondulados e negros, nariz pequeno e direito e um belo e quente olhar castanho. Ambas as famílias do escritor têm de comum a pobreza. Descendiam das vagas de deserdados da sorte, “despejados” pelas potências europeias nas suas colónias, o que, para além de reforçar a autoridade nos territórios ocupados, ainda resolvia alguns problemas criados pelo desequilíbrio social. Muitos morriam sem sequer terem tempo de pegar no arado ou na enxada. Os sobreviventes aravam a terra… com a espingarda à bandoleira e o quinino na algibeira. Com a morte do pai os Camus/Cormery vêem-se obrigados a retirar para Argel, para a casa da avó materna, no bairro pobre de Belcourt. É aí que Camus irá viver a sua infância e adolescência com a mãe, o irmão, a avó e dois tios, num apartamento de três assoalhadas sem água corrente nem electricidade (*). A avó integra desde tenra idade a família nuclear do escritor/Jacques. Símbolo da ordem e da sobrevivência, será também a trave mestra da consciência familiar. Uma tirana que “servia de pé à mesa” e que impunha a disciplina aos netos ante o vazio resultante da apatia da filha. É em relação aos tios que realidade e ficção não caminham juntas. Não sabemos se dos dois tios existentes na casa da avó de Albert, algum correspondia a Etiénne (às vezes Ernest, no livro). Sabemos que entre o sobrinho Jacques e o tio existiu uma enorme cumplicidade que se prolongou por toda a vida. Sabemos também da existência de um outro tio, Gustave, casado com uma irmã da mãe, que se poderia designar como um “talhante voltairiano”, quase anarquista. Gustave escolheria algumas das primeiras obras para o sobrinho ler. Quando morreu, Camus escreveu: "Foi o único homem que me fez imaginar um pouco o que poderia ser um pai "(*) Gustave é também referenciado no romance, ainda que de uma forma muito breve. Em Argel a infância de Jacques/Albert decorre de forma despreocupada, entre corridas clandestinas à praia com os amigos, breves assaltos às frutas em exposição à porta das lojas, brigas com o irmão Henri e as sempre existentes idas à caça com o tio Etiénne. Com a entrada para a escola primária, Camus vai conhecer um dos homens mais importantes na escolha do seu futuro. Trata-se do professor Germain Louis ( Monsieur Bernard no romance) que, ao reconhecer capacidades no jovem garoto, não hesita em influenciar a família no sentido de o deixar trabalhar para a otenção do estatuto de bolseiro do liceu. A única forma de um miúdo de uma família pobre seguir os seus estudos, libertando-se assim da impossibilidade financeira a que estava condenado. O professor primário Germain Louis ajudá-lo-á fora do horário escolar a vencer esta barreira, e a prosseguir na direcção de uma vida melhor. Da pobreza, Albert Camus só tomará consciência com a sua chegada ao liceu. Na escola comunal de Bel Court tudo tinha passado despercebido porque todos eram miseráveis. Inicialmente Albert Camus terá vergonha desse estatuto e, mais tarde, envergonhar-se-á de ter tido vergonha (*). Imediatamente antes do liceu, a avó obriga Jacques a frequentar a catequese. É aí que Camus escreverá uma das mais belas passagens de “O Primeiro Homem”. Um dia, por ser uma criança irrequieta, Jacques é surpreendido pelo padre a fazer caretas para os companheiros. Para o usar como exemplo, o padre prega-lhe um enorme estalo na cara que quase o derruba. A reacção de Jacques é sintomática. Não chora nem odeia, porque …em toda a sua vida foram a bondade e o amor que fizeram chorar e nunca o mal ou a perseguição que, pelo contrário lhe robusteciam o coração e a decisão. Com o liceu surge também de forma mais acentuada, uma das suas primeiras paixões: o futebol. Camus chegou mesmo a ser guarda-redes da equipa principal do RUA (Racing Universitaire d’Argel) (ver foto da capa do livro publicada no início deste texto). A ele fará referência na “Peste”, uma das suas obras mais importantes a par de “O Estrangeiro”. “O Primeiro Homem” termina nas recordações adolescentes, no despertar do desejo, bem como da consciência da passagem para homem. Jacques sente-se então invadido por uma ainda maior vontade de viver, de mesclar-se com aquilo que a terra tinha de mais quente. Por escrever ficou a referência a uma tuberculose prematura aos 17 anos que o obriga a cessar a actividade desportiva. Depois do desperdício que foi a morte do pai, encontra pela segunda vez as terras do absurdo, onde não existe ordem nem lógica que regule a existência humana. A partir daí amará mais intensamente, até aos limites da paixão, na eminência do seu fim sem motivo. O seu primeiro texto impresso é publicado quando tem 18 anos e com 26 termina “O Estrangeiro”, que lhe granjeará em 1957 o Prémio Nobel da Literatura. Da vida de Jacques Cormery ficou também por escrever a passagem de Camus pela Resistência Francesa aquando da ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial. Ficámos sem saber quais seriam as considerações de Jacques sobre a guerra e o dilema de “matar ou morrer” em que os homens se confrontam neste tipo de situações. Com uma escrita sóbria, essencial e humanista que caracteriza toda a sua obra, o pensador que escrevia ou o escritor que pensava, atravessa o rosário falando de si, apresentando aqueles que amou e que o amam na simplicidade da pobreza. Albert Camus dizia muitas vezes que só por aquela gente humilde e iletrada ter de alguma forma direito a registo, já valia a pena escrever. Sentia-se no entanto triste por saber que essa mesma gente nunca leria as suas palavras. Também Camus nunca chegou a ler “O Primeiro Homem” sob a forma acabada de livro. Por isso ele lhe foi dedicado pelas palavras da sua mulher.

Artur

(*) Grenier, Roger – “Albert Camus, Soleil et Ombre” Ed. Gallimard, Paris, 1987

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