domingo, 17 de abril de 2011

O CÂNDIDO

A primeira imagem que tenho dele é a de um puto de estatura média no meio do recreio a tentar chamar a atenção dos outros. Gritava: “Todos contra mim!” e a seguir aguentava uma chuva de miúdos que lhe caíam em cima em gritaria de manada descontrolada. Estávamos a na terceira classe da instrução primária (agora, terceiro ano). O Cândido fazia isto duas vezes por semana. Passada a avalanche da manada, levantava-se todo sujo e com a roupa fora do lugar, sacudia-se e lá voltava ao seu caminho como se nada fosse. Era um tipo bem disposto e tranquilo armado de um sorriso sincero, desconcertante. Nesses dois anos em que estivemos juntos na mesma turma (classe) convivíamos a jogar à bola ou ao “guelas” (berlinde a três covas). De vez em quando fazia-se intervalo. O Cândido corria para o meio do recreio e gritava: “Todos contra mim”.
Num Domingo em que passava de carro com o meu tio pela Praça de Espanha, vi o Cândido. Junto com mais alguns miúdos, aproveitava os semáforos fechados para vender tabaco de contrabando no meio do trânsito. Fiquei depois a saber que ele e os outros, eram mandados pelos pais para ganhar alguns trocos. Como eram menores a polícia nada podia fazer para os deter. Na segunda-feira perguntei-lhe se também podia ir com ele, para fazer uns trocos. A resposta foi imediata. Quais trocos? Todo o dinheiro que fazia era para entregar ao pai dele. E se fizesse pouco, além de trabalhar o Domingo inteiro, ainda se candidatava a um valente arraial de porrada. E tudo isto ele dizia com a maior das simplicidades, com se de um evidência se tratasse. Não havia justiça nem injustiça. As coisas aconteciam assim e era dessa maneira que ele vivia…com o que tinha.
Depois de concluída a escola primária, eu fui para um colégio interno e deixei de ver o Cândido. Encontrei-o já com 15 anos numa esquina do bairro. Nessa altura já dominava por completo a técnica de roubar auto-rádios, vendia e consumia quase todos os tipos de droga. Mas o sorriso era o mesmo, apenas o brilho dos olhos é que tinha escurecido. Já tinha passado uns meses no reformatório, acabando por sair através de um sistema de semi-internato. Desde que frequentasse as aulas de uma escola técnica e apresentasse bons resultados ficava libertado. Não estava a correr mal. Faria tudo para não voltar aquele sítio. Mesmo estudar. Convidou-me para ir assistir a um jogo de andebol da escola dele. Não mostrei muito entusiasmo. Ele insistiu. Os vigilantes controlavam a obrigatoriedade das entradas. Quem não fosse era penalizado. Mas também não era para demorar muito. Dez minutos depois estaríamos todos cá fora. Dez minutos? Mas isso não chegava nem ao intervalo do jogo. “Garanto-te que são dez minutos. Vem comigo que depois percebes. Acabei por ir. A escola do Cândido era composta por toda a espécie de adolescentes problemáticos, todos com cadastro no mundo do crime. Chagámos ao pavilhão, as equipas entraram e começou a partida. A bancada de apoio da escola dele podia configurar a Liga de Juniores de um congresso de gangsters de Chicago. Aos dez minutos houve um da primeira fila que se levantou virado para a tribuna. Ergueu um braço no ar e deu início ao primeiro cântico de apoio à equipa. Vindo do nada uma voz colectiva entoava uma só frase: “C…a da mãe deles, c…a da mãe deles, c…a da mãe deles.” Parecia ser o pavilhão que cantava na vibração do zinco do telhado, no ranger dos tacos de madeira, no eco das bolas rematadas à baliza. Logo a seguir a policia aproximava-se deles para os dissuadir. Os primeiros insultavam a autoridade, cuspiam, começavam a cair as primeiras descargas de reposição da ordem. Seguia-se a debandada geral para fora do pavilhão. Os dez minutos do Cândido eram verdade. Fomos lanchar para uma pastelaria. Falámos de tudo e mais alguma coisa. Para ele os dias continuavam a ser encarados da mesma maneira. Um atrás do outro, despidos de propósito e de racionalidade. Expliquei-lhe que estava numa altura em que teria de decidir qual a minha futura área de estudos. Que não sabia ainda muito bem o que fazer com a minha vida. Ele respondeu-me que tinha sorte numa coisa. Ainda tinha uma vida para escolher.
Anos mais tarde, já tinha entrado na faculdade, voltei a saber dele. Tinha morrido com uma overdose num jardim anónimo de Lisboa ao anoitecer. Com 20 anos, o intrépido desafiador tinha sido derrotado. Não sei se nesse dia gritou “Todos contra mim” como fazia no recreio da escola primária. Não sei quantos é que lhe caíram em cima dessa vez em que não se voltou a levantar todo sujo com a roupa esfrangalhada. Sei apenas que era um puto sem uma réstia de maldade. Um tipo com um sorriso sincero, desconcertante, que não questionava o azar de ter nascido no lado errado da vida nem as tareias que ela lhe dava quase todos os dias. Sei apenas que ainda hoje me lembro dele de vez em quando. E para não chorar decido cantar a linda canção que ele me ensinou num jogo de andebol. “C……a da mãe deles”.

Artur

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