Há aquela estação de serviço a Norte de Lisboa em que eu gosto de fazer uma paragem, especialmente nos fins de tarde no Verão. A sua localização elevada, o castanho alaranjado do ar e a ausência de rasto humano num raio enorme em redor dá a sensação estarmos no deserto, ou num ponto intermédio da galáxia, entre dois planetas distantes. Entro na cafetaria depois de abastecer o carro. Tento lembrar-me da marca de combustíveis que a explora mas a paciência faz-me uma careta desincentivadora. “Não te metas nisso. Tens mais que fazer. Amanhã as contingências do mercado fazem-na mudar de mãos e tudo o que escrevesses sobre este local acaba por estar mal a partir daí. Era uma bomba trolaró, passou a ser biribi. E depois lá vinha um fundamentalista corrigir e dizer que não era assim. Vá, concentra-te no que é importante!” Ás vezes a paciência estica-se em conselhos, fica tempos e tempos a falar sozinha, porque sabe que a costumo ouvir, isto é, consigo acompanhar as duas primeiras frases dela que são as mais importantes. Depois é como a voz de uma mulher de manhã a distribuir tarefas e movimentos, a dispersar opiniões e a fazer perguntas, tudo no mesmo minuto. O botão de desligar sorri e o som fica vago. Se acompanharmos com um sorriso mediano, tudo corre bem até à saída estratégica para o duche, a barba, etc.
Mas daqui desta estação no meio do deserto consigo ver ao longe os prédios de S. António dos Cavaleiros a esticarem-se no declive dos ombros de um camionista. Já lá morei. Quanto tempo foi? 2, 3 anos? Não me lembro nem me interessa. Interessa-me recordar um regresso de férias com o meu filho mais velho no banco de trás do carro. Ao fim de várias horas de caminho e com a imagem de casa já no horizonte, fomos obrigados a parar ali. Tinha fome. E ali estivemos a ver aquele deslumbrante fim de tarde que coincidia com o fim das férias. Lembras-te Tiago? Provavelmente não. Eras muito pequeno. Agora caminhas seguro com uma barba de três dias, bebes café e cerveja e compras o Diário Económico. Mas eu nunca me vou esquecer. Aqueles instantes mágicos a fumar um cigarro de calções nos bancos da esplanada, tu agarrado a uma sandes de queijo e o mundo suspenso naquele quadro em que éramos só nós os dois.
E volto ao caderno e ao filme. É sempre a segunda cena, ou a terceira as que me dão mais dificuldades. Como numa canção. A entrada forte e atractiva, o segundo verso mais leve, um bocadinho de refrão e a terceira. Chata, massacrante, aquela que não pode falhar e por isso mesmo tem de ser bem imaginada, sair com boa apresentação. Uma prancha de surf que nos cumprimentou nas janelas sem cair na estrada, uma prancha descaída que se soltou do tejadilho. O pânico de três adolescentes, a figura de ursos a entrar na estação de serviço ante a galhofa de camionistas e famílias em geral. O fim do susto brindado com uma gargalhada colectiva. A senhora da caixa para nós: “Vocês trabalham em cinema? Isso parece uma coisa de duplos.”
A terceira cena, é preciso concentração para a terceira cena. Jurei que não passava desta semana. O homem a convalescer depois do acidente, apático, desligado. A mãe vai buscá-lo ao hospital. Ou a cunhada e a sobrinha. Ou a cunhada e a sobrinha têm um diálogo mais azedo de mãe/adolescente acerca da hospitalização do tio. É melhor esta.
Há quanto tempo é que estará aqui esta estação de serviço. Na tropa lembro-me que já existia. Parava aqui para beber um café antes de voltar ao Domingo à noite. Demorou a chegar porque era de noite, era um tempo que quis esquecer. Mas a noite no deserto também é encantadora. Como os teus cabelos no reflexo do luar. O deserto é sempre o melhor lugar para nos encontrarmos. Porra, a terceira cena. Vamos lá. Pensa.
O gajo sobrevive a um acidente. Aparece a cunhada e a sobrinha a falar nisso. A seguir o gajo já em casa com a mãe narcisista a falar dela e da vida dela, a distribuir tarefas e movimentos, a estabelecer horários da medicação, a espalhar perguntas e respostas. O homem desliga. Levanta-se do sofá e atravessa a sala lentamente apoiado numa bengala. Agarra nas chaves do carro e pira-se. Enquanto espera pelo elevador tem ainda tempo de ouvir a mãe perguntar: “ Mas onde é que tu vais agora?” O elevador chega e abre a porta. Entra e deixa-a voltar a fechar-se. Fala baixinho porque as dores apertam quando grita: “Vou descansar numa estação de serviço a Norte da cidade, no meio do deserto.”
Artur
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