quinta-feira, 3 de junho de 2010
CONVERSANDO COM OS DEUSES
JOÃO AGUIAR 1943 - 2010
Há autores que, nunca tendo tido o prazer de conhecer, falam connosco através das obras que deixaram, tornando-se uma espécie de amigos silenciosos com quem os diálogos se foram construindo entre memórias e fantasmas. João Aguiar é um deles. Talvez pelo estilo despojado com que nos apresentava as suas sugestões narrativas, talvez pela ternura com que desenhava os personagens, talvez pela elegância com que nos introduzia aos seus universos, o certo é que, para mim, tornou-se um amigo desde a primeira linha lida. Dos vários romances que li dele, o primeiro (A Voz dos Deuses) foi como uma conversa de que recordarei para sempre todos os pormenores. A história de Tongio, um companheiro de armas de Viriato que vai desenrolando as suas memórias, em poucas páginas conseguiu-me enquadrar num espaço/tempo longínquo, como se sempre lá tivesse vivido. Não é só a humanização do mito “Viriato”, que acaba por o tornar uma figura ainda mais extraordinária do que nos livros de história; não é só pelo rigor descritivo de todo um sistema social e político a dois mil anos de distância desenhado de forma extremamente credível; não é só pela origem misturada do personagem Tongio (filho de pai celta e mãe fenícia), sina de milhões de almas em territórios de passagem como a Península Ibérica. Essencialmente, o grande triunfo de A Voz dos Deuses está no conflito interior dos homens que se recusam a ver desaparecer o mundo que foi deles, que os viu nascer e foi criando, quando esse mundo se aproximava do fim. Perante uma nova ordem que se aproxima a passos largos, os homens resistem, combatem essa ideia, combatendo um futuro de submissão. E assim se realizam como homens…mesmo quando perdem… Os lusitanos resistiram enquanto puderam à tentativa de ocupação dos exércitos romanos. A sua resistência foi longa e dura apesar de vencida no fim. Mas a história dos lusitanos acaba por ser a história de todos nós. Sempre que decidimos tomar um rumo, encontrar um significado e defender uma posição estamos a empenhar a nossa existência. E, sabemos bem, no longínquo do nosso inconsciente, que todas as guerras da existência são guerras perdidas. Porque a morte acaba sempre por triunfar. E para o João Aguiar, triunfou hoje.
Para trás ficam as histórias, a imaginação, os livros arrumados em prateleiras como fotografias de familiares já desaparecidos. Conversas registadas que nos fizeram rir e chorar e amar cada vez mais este mistério das narrativas que faz conversar quem nunca se conheceu.
Ao olhar para a prateleira onde arrumo os livros do João Aguiar vou lembrar-me das memórias de um companheiro de armas do Viriato, dos bastidores militares e políticos da Roma Antiga, vou-me deleitar com a cena de um reformado e um rapaz em torno de uma geringonça que era suposto fazer tempestades, vou continuar a admirar e a seguir com interesse a história daquele homem que não tinha nome…
A partir de hoje, para o João Aguiar, as conversas continuam. Mas desta vez…os interlocutores são os deuses.
Obrigado João.
Artur
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2 comentários:
Acreditas que nunca li nada deste autor, Artur! Mas via-o muitas vezes, sempre sozinho, aqui em Oeiras! Parecia simpático e de bem com a vida. Deve estar melhor, agora! Abraço.
Qualquer dia falo com ele...
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