Parafraseemos Almada, ou Pessoa a propósito de Almada, e voltemos a lembrar: “ O génio manifesta-se em não se manifestar”. Frase mais ambígua do que sonante, e no entanto de uma simplicidade avassaladora. “Não se manifestar” é o mesmo que dizer tudo sem que se perceba que foi tudo dito. Que foi encontrada a melhor forma, a mais simples, de fazer uma narrativa, e que essa forma é a mais difícil de inventar.
Literatura, José Cardoso Pires e a sua tendência natural para abrir cirurgicamente uma tradição de barrocos e rodriguinhos literários, tradições herméticas, adjectivações exaustivas e dispensáveis, e liquidificar as palavras num fio simples de espessura comprovada pelo tempo. E “Bum!”: “O Delfim”, “A Balada da Praia dos Cães” “Alexandra Alpha”…
Hemingway e os seus personagens. Jornalistas que se comportam como jornalistas, guerrilheiros que pensam como guerrilheiros, copos isolados de Gin que sabem a Gin e não sabem a mais nada. Uma entrada no mar, umas dezenas de braçadas e o cansaço. Só o cansaço e o bem-estar do exercício. E “Bum”: “Paris é Uma Festa”, “Fiesta”, “Por quem os Sinos Dobram”…eles dobram sempre por ti. E uma criança perdida entre lágrimas, suja da poeira dos bombardeamentos, e três republicanos cercados num alto de um monte que discutem se “A Passionaria” não mandou o filho estudar engenharia para Moscovo em vez de estar ali com eles, a levar porrada dos franquistas.
Usar a Literatura pelo que ela é, um simples momento de comunicação, um instante narrativo, e fixar essas ferramentas. Dominar a técnica de usar uma boa história auxiliado por uma boa forma de a contar. O génio que se “manifesta sem se manifestar”, precisamente por isso. Porque comunicou, narrou da forma mais simples uma história previamente seleccionada da memória humana.
“Tudo o que eu fiz foi sofrer com aquela pobre rapariga e depois, quando ela caiu de cabeça e quase se matou…lembras-te quando ela caiu de cabeça? Estava desfeita e tudo o mais. Era a mais bela miúda índia que já se viu. Estou a dizer índia, índia pura. Esperanza Villanueva. Villanueva é um nome espanhol de não sei onde – de Castela. Mas ela é índia. Ou seja, é metade índia, metade espanhola…linda. Ela tinha ossos, meu, apenas ossos, pele e osso. E eu não conto no livro como é que acabei por lhe deitar a mão. Sabes? Acabei mesmo. Finalmente deitei-lhe a mão. Ela disse: “Chiiiiiu! Não deixes que o senhor feudal nos oiça.” Ela disse: “Não te esqueças, eu estou muito fraca e doente.” Eu disse: “Eu sei, tenho estado a escrever um livro acerca de que como és fraca e doente.”(*)A realidade sem decoração, a alma nua, a descrição mínima da personagem máxima. O sofrimento sem maquilhagem. O discurso limpo, sem desvios, como uma estrada em linha recta. Trabalhos simples sempre ligados ao ser humano, porque é dele que se fala quando para ele se escreve. Escreve-se em solidão para se estar menos sozinho, para levar as palavras mais longe, a desconhecidos que falam de volta. Escreve-se de forma simples para chegar a mais pessoas, ao homem comum interessado numa história bem contada. Longe das Academias e de todos os antros de Egos e Poder. Trabalhar o Romance enquanto ideia de morte, com duração prevista, transformando a Vida num destino. E perceber que esse destino só poderá ser realizado pela confirmação do interesse da sociedade em que foi fabricado.
A eternidade e a marca do autor são só aspectos colaterais, anfetaminas que nos afastam de saltar de um andar alto. Tal como o destino do Romance, também o destino do autor termina na previsibilidade da duração da sua memória. Mas o Génio fica, apoiado no Estilo (No Altíssimo e Omnipresente ESTILO, elemento distintivo de todos os artistas), manifestando-se em não se manifestar.
Artur
(*)Jack Kerouac em entrevista à “Paris Review”, descrevendo uma prostituta toxicodependente por quem se apaixonou na Cidade do México e que lhe inspirou o romance “Tristessa”.
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