Aqui me tens, imagem que me reflectes no espelho sem expressão definida. Olhos que interrogam, que hesitam na duvida de reconhecer o olhar que reflectem. Aqui me tens como naquelas tardes de Primavera em que a rua era o mundo e tudo era possível de acontecer. Ali me tinhas, sozinho e no entanto livre, embriagado de poder fazer o que quisesse, escolher qualquer direcção ao acaso. Por ali estava de atenção suspensa sobre a espuma das ondas de uma praia morna, sentindo a humidade da areia no passo. Ali me tinhas, eu e o mundo perdidos de tempo para esbanjar, afogados num universo de interrogações, num mar de dúvidas, alimentados pela vontade imensa de conhecer, de saber de correr os quatros cantos do mapa da existência.
Ali estive, nas escolhas e nas lutas, nas dores e nas alegrias, no infinito e doloroso processo de quem cresce sozinho, acompanhado apenas por uma imagem no espelho.
Assim me tens, caçador inveterado de dúvidas, perplexo espectador eterno que nunca compreendeu grande coisa.
Assim me tens, enfraquecido pelo pó dos dias, enferrujado pelo bafo da humidade a desacelerar o andamento, a gemer mais vezes do que a rir, mas contente. Contente por saber que tudo isto, por mais estúpidos que sejam os dias, tudo isto terá que terminar como numa viagem de comboio. As estações vão acontecendo em linha, nunca em círculo. E a linha terá o seu fim, a última estação antes de perceber melhor o quadro inteiro. Talvez uma aproximação nocturna debaixo de chuva, um apeadeiro solitário e abandonado como a existência. Um átrio arejado e limpo e um espelho para onde caminharei sem pressa. Alguém do outro lado que me vem buscar, um vulto que se próxima à medida que caminho para ele. Uma troca de cumprimentos solitários envoltos num sorriso cansado. Aqui me tens, morte.
Artur
2 comentários:
Quando se fala assim com a morte ainda se está longe dela...(ouvi dizer:)... da morte como a última estação ou lugar ou fim ou sei lá o quê... mas vamos percebendo esse lugar final, à medida que aqui ou ali vamos perdendo e por isso morrendo aos bocadinhos...
*vá Artur, entrega-te mas é à vida e continua lá a escrever, mesmo que seja sobre a morte;)que eu enquanto estiver para aqui viva;), olha vou lendo...
LOnge ou perto...é garantido e certo. Viver com esse sentimento presente é uma maneira de avaliar e aproveitar melhor o tempo que ainda é nosso. Vai lendo, vai lendo e continua a gostar.
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