sábado, 24 de abril de 2010

ESQUECI-ME


De repente, esqueci-me. Acho que queria “ser onda” e mergulhar no vaivém do oceano com um romance do Manuel Rui debaixo do braço. Naqueles breves momentos em que parece que tudo faz sentido, naqueles instantes de lucidez absoluta que poisam numa fracção de segundo nas nossas cabeças. Quando, de repente, o universo é um lar acolhedor e nenhuma existência pode ser dispensada. Aí, sim. Sei quem sou, gosto de “me” ser, o “Eu” tem muito mais razões do que desculpas. Uma razão total e absoluta, tão forte e tão breve que quase só se identifica vestida de vaga memória.
Um jantar ao ar livre, algures em África, entre o som dos tambores e os cânticos locais.
Talvez por lá ter nascido, é em África que estes momentos de plenitude existencial mais me visitaram. As manhãs que se espreguiçam numa luz inconfundível, a paisagem luxuriante, os fins de tarde dignos da criatividade de um Deus maior. Também sinto o mesmo nas cidades da minha predilecção, mas em África…parece que tudo corre numa sabedoria milenar, harmoniosa. A atravessar um rio, a caminhar num mercado repleto de estatuetas, vegetais, móveis feitos à mão. A beber um gin tranquilo antes do jantar em frente a um rio onde se escondem hipopótamos, observando na margem uma família de elefantes que bebe água e se diverte em empurrões de toneladas, uns contra os outros.
De repente, esqueci-me. Deixei que os meus fantasmas tomassem conta da direcção da conversa e caí na depressão que eles me causam por esta e por aquela razão antiga, por um passado que não se pode voltar a arranjar, por mágoas que já gastaram o seu tempo de magoar. E fecho a respiração, aguentando como quando a onda grande nos enrola como uma máquina de lavar. Por momentos sinto que me vou afogar, não sei onde é “em cima”, não há Sol que me oriente. O principal é perder o medo, senti-lo, falar com ele, mas à distância. Deixá-lo naquele lugar em que não nos domine. Parar de agitar braços e pernas à toa sem saber em que direcção nadar. Esperar…e “cagar”. Não somos feitos para viver no fundo, portanto, mais cedo ou mais tarde acabamos por vir à tona. Se tivermos que ir para o fundo, que seja quando quisermos.
De repente, esqueci-me. Entrei nas várias salas desta casa à procura de alguma coisa, e encontrei sempre coisas diferentes. Raramente, o que procurava. Mas como onda que julgo ser, vou e venho sem me importar com os dias cinzentos. Se passamos a vida frustrados por nunca conseguir encontrar a definição do absoluto, a manifestação da eternidade, o dedo do divino, se calhar é por termos a memória desses conceitos no nosso interior. Por sermos absolutos, deuses exilados em atmosferas finitas, existências perenes. Há quem diga que a sequência das ondas marca a respiração do mar. Acredito.
Assim como os momentos de harmonia absoluta marcam os traços da nossa verdadeira identidade. Quem me dera ser onda…

Artur

2 comentários:

Clarice disse...

não te esqueças... (porque quem tem memórias, tem futuro e África é já ali... e é nos momentos, mesmo nos mais pequeninos e pontuais da nossa vida (os outros momentos às vezes são palha), que nascem os "traços da nossa verdadeira identidade"... estes momentos marcantes é quando somos "onda"...e respiramos...

*tu dizes tudo... eu só escrevi sem acrescentar um ponto, para te dizer que gostei e tal...:)

Artur Guilherme Carvalho disse...

"Tu dizes tudo" é o melhor comentário que um leitor pode fazer a quem escreve. Obrigado Clarice.