Hoje apetece-me falar de heróis. Uma tarefa nada fácil num país especializado em pavões e miúdos que nunca crescem e passam a vida a comparar o tamanho das pilas. Mas os heróis são uma parte fundamental na construção de um país, na edificação da Memória Colectiva. Normalmente são homens que cumprem as ordens que lhes são dadas mais aquelas que lhes dita a consciência. Sacrificam a própria existência e morrem por elas ou regressam na condição do anonimato. Raramente evocam o seu tempo de glória e vivem em silêncio. Como aquele pai que nunca contou ao filho quantos inimigos abateu nos seus anos de guerra. Nem a sensação que lhe ficou desses dias. Porque há coisas que vivem e morrem dentro de um homem e só a ele dizem respeito…ou fazem sentido. Desta massa anónima e silenciosa de homens submetidos às ordens recebidas e ao silêncio dos seus actos, tive a sorte de conhecer alguns. Arrancar-lhes pedaços do seu passado era tarefa inglória, esforço inútil. Conheci muitos pelo nome, inscrito em paredes de mármore num convento secular, ao som do toque dos mortos. Sacrificados em nome da Pátria, desde as guerras peninsulares até à do Ultramar…ou Colonial. Podia-vos contar uma ou duas histórias sobre eles. Um morreu agora há dias. Era pai de um amigo meu. Conhecia-o desde os meus dez anos. Sabia vagamente que tinha sido militar, retirado das fileiras na sequência de ferimentos em combate. A propósito de um documentário sobre os prisioneiros do Exército Português na Índia, encontro-o na lista dos entrevistados. Fiquei surpreendido. Então, ao fim de décadas de nos conhecermos, nunca me disse que tinha estado prisioneiro na Índia? Ele focou em mim aquele olhar terno de tio mais velho. “Há coisas que não tem interesse nenhum contar.” Apenas isto. Nem contabilização de culpas, nem considerações históricas, nem relatos de episódios sofridos na carne. Apenas um silêncio feito de nobreza e orgulho.
Também vos posso contar a história de um outro, que não conheci, mas que também se encontrava na Índia nessa altura a chefiar um posto de polícia. As ordens vieram para iniciar a retirada e, de caminho, dinamitar todas as pontes que ficassem para trás. Quando se preparava para colocar as cargas explosivas numa dessas pontes foi surpreendido pela chegada de um régulo da região. Ele pedia-lhe por tudo para não destruir aquela ponte já que ela era fundamental para o seu povo. Habitavam numa das margens mas trabalhavam os campos na outra. Sem a ponte, além da fome, os prejuízos para aquela debilitada população seriam incalculáveis. Ele compreendeu e cedeu. Chegado às suas linhas, relatou o sucedido sem subterfúgios. Esse pequeno acto de insubordinação custou-lhe um castigo e uma carreira. Morreu em silêncio, sem nunca se queixar da sorte ou sequer da incompreensão alheia.
Também vos posso contar aquela passada no norte de Moçambique em que um oficial de cavalaria morreu numa emboscada. No dia do aniversário daquela instituição onde os nomes dos heróis se inscrevem em paredes de mármore no átrio da entrada, está previsto que, havendo dois ou mais antigos alunos na mesma povoação, devem jantar juntos. O corpo do morto aguardava num armazém o seu regresso à Metrópole. E chegou o dia do aniversário da instituição. Dois ou três resolveram cumprir a tradição. O oficial abatido também era antigo aluno. A mesa foi posta a contar com ele. Um talher, um guardanapo, um copo. No lugar da cadeira colocaram o caixão fechado. O jantar decorreu com toda a normalidade.
Numa escola antiga de samurais pode ler-se: “ O caminho do guerreiro é o silêncio”. Eu acrescento: o caminho, a vida, e a morte.
Artur
2 comentários:
Adorei o texto. bjs
Alfa,
Obrigado pela visita.A porta está sempre aberta. Volta sempre.
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