quinta-feira, 4 de março de 2010

O SOUSA

Naquele tempo, a guerra já tinha acabado há dez anos mas o Serviço Militar Obrigatório continuava. Eu, e muitos como eu, que não tinham graves problemas de saúde ou não conheciam nenhuma “cunha” digna desse nome em secretarias esconsas do recrutamento, acabávamos condenados a cerca de 2 anos de botas pesadas, formaturas, e um sem fim de pormenores marciais de um processo que transformava mancebos em cidadãos prontos para enfrentar a vida. Não vou agora aqui explanar as razões ou opiniões acerca do assunto em si. Desse tempo, como de quase todos os tempos que vivi, as melhores recordações estão directamente ligadas ao elemento humano. As pessoas que conheci, as suas histórias e a universal improbabilidade de os nossos caminhos alguma vez se poderem ter cruzado. O Sousa foi um deles. Era um tipo magro e louro cheio de genica e bem disposto. Acabado o curso de Engenharia Civil no Porto, marchou como eu para Santarém. A sua espontaneidade, a sua forma simples e descomplexada de estar na vida, e a franqueza das suas conversas rapidamente nos aproximaram. Vivemos 5 meses juntos (de Março até Agosto), até que nos espalhámos pelos regimentos de Cavalaria do país.
Uma tarde, a atravessar um afluente do Tejo, com água até ao pescoço e vários kilos de equipamento no lombo, o Sousa explodiu: “ C……lhos ma f…da. Carvalhinho, se sairmos daqui vivos, vamos pagar uma promessa. – Eu ia atrás com um péssimo humor e respondi: - Olha lá, pareces os magalas do antigamente. Mantém a cabeça de fora da água e olha para a frente em vez de estar a pensar em ir a Fátima.
- Não é nada disso, pá. Uma promessa de turistas…
- Turistas?
- Sim. Vamos atravessar rios, mas em vez de ser como hoje, feitos mulas de carga, vamos como turistas. Com o equipamento todo. Para esquecer este triste dia num afluente do Tejo. Então, alinhas?
Claro que alinhei, embora na altura não desse grande importância à proposta daquele “enginhêiro” do Porto. O certo é que, depois da tropa mantivemos contacto e a ideia voltou à baila. E assim, num belo fim de tarde na Foz, numa esplanada, decidimos descer os três maiores rios do país em canoa. A promessa foi cumprida. Ou, pelo menos, parcialmente cumprida. Eu explico. Começámos no Douro, num passeio muito agradável iniciado perto da Régua. A paisagem, nova para mim, deslumbrou-me, para além da hospitalidade das gentes daquela região. É claro que às travessias de rio não podia faltar o roteiro gastronómico. Umas remadas na água e a seguir uns baldes de comida extraordinária, regada por outro tanto de vinhos magníficos. Afinal de contas, somos portugueses, porra!
A travessia do Tejo também correu bem. Partimos de Constância e fomos por ali abaixo. Foi a vez do Sousa se extasiar com o castelo de Almoroul e as explicações de roteiro. Se bem que a paisagem da lezíria já nos fosse familiar, foi mais um fim-de-semana exemplar de actividade física, gastronómica e contemplativa. Não necessariamente por esta ordem. Foi na vez do Guadiana que tudo se complicou. O Sousa não deixava nada ao acaso. Canoas, coletes, bússolas, mapas, itinerários, lanternas, coletes, não faltava nada. Ou não fosse ele engenheiro. Dia marcado, local escolhido, e lá fomos a caminho de Mértola, após cuidadosa preparação da jornada. Chegados lá, fomos brindados com uma surpresa desagradável. É que naquele Verão o Guadiana secara em alguns pontos do seu curso. Secara literalmente. Ainda não havia Alqueva. O Sousa chegou-se ao leito seco do rio e a sua expressão adquiriu contornos de raiva, misturados com uma tristeza imensa. Primeiro pensou que eu estivesse a gozar com ele. – Tás a brincar! Enton onde é que está o rio c…..lho? – o sotaque soltava-se à medida que o desespero tomava conta dele. – Tens a certeza que isto aqui é Mértola?
Respondi-lhe que sim, que era ali. Não havia dúvidas. Só faltava o Guadiana. O Sousa parecia uma criança que na manhã de Natal não encontrou nenhuma prenda no sapatinho. Ao fim de algum tempo, virou-se para mim: - Mas que terra é esta que se deixa ficar sem o rio? – Ainda lhe ia a dizer que as barragens em Espanha, mais aquele ano de seca, mas já não ouviu. Deu meia volta e arrancou em direcção à vila. Corri atrás dele. Só parou no gabinete de turismo. Lá dentro, um rapaz de 16, 17 anos dormitava entre folhetos e guias da região. O Sousa fez-se anunciar com um berro. – Acha bem esta merda? – o rapaz deu um salto e ficou a olhar para ele, que insistia – Estou-lhe a perguntar se acha bem esta merda? Bênho eu do Porto carregado de canoas e de material e chego aqui e apresentam-me esta desgraça. O que é que fizeram com o rio c…o ?– o miúdo tentava perceber a razão daquela ira sem êxito- Bocês dizem que aqui há um rio e não há nada. Mas que brincadeira é esta, afinal? O que é que está a pensar fazer?
A conversa continuou mais alguns minutos até que o Sousa percebeu que não havia nada a fazer. O rio secara e, com alguma sorte, talvez no Inverno voltasse a ser rio. O miúdo do turismo não podia fazer nada mas indicou-nos um excelente restaurante onde entrámos à uma da tarde e saímos já perto das 5. Começámos com um gaspacho e fomos andando pelos enchidos logo a seguir a uma açordinha de peixe. O tinto maravilhoso correu muito mais que as águas do Guadiana e o remate final ficou a cargo de uma aguardente caseira que transformou o dono do restaurante em nosso amigo para a vida. Acabámos a tarde sentados na margem do rio seco a falar de romanos e fenícios, mouros e cristãos. O Sousa apesar de tudo, não conseguia esconder uma pontinha de desapontamento. – Quarenta e tal graus, á beira de derreter os miolos, um rio que seca no Verão e que ninguém sabe quando volta… Estes mouros são doidos!

Artur

3 comentários:

Unknown disse...

Brilhante Artur. Adorei ler esta história, para começar o meu dia. Viva o Sousa, viva o Artur, vivam as lembranças e os rios dos mouros, que às vezes apesar de secos servem para contar histórias fantásticas.

Clarice disse...

Com amigos até na margem de um qualquer rio seco se deixam correr as palavras, como correntes sem fim... claro que um "tinto maravilhoso" ajuda sempre...:)

*belo texto, anda solto este conto ou mora nalgum rio? livro queria eu dizer?:)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Alfa e Clarice,
Obrigado pelas vossas palavras. Não clarice, este texto anda solto, como muitos por este blog fora. Voltem sempre