terça-feira, 23 de dezembro de 2008

FRENTE AO MAR


Naquela manhã de Inverno acordou naturalmente na casa em frente ao mar. Sem cansaço interrompido, nem ressaca picadora de miolos, nem coisa nenhuma que lhe tivesse vendido o sono a troco de um ou outro excesso. Montou a costumeira dose de café na máquina, esperou, encheu uma caneca e foi até á janela. Naquela manhã sem nuvens até a claridade arrepiava, mas não se importou muito com isso. Deixou-se ficar como que hipnotizado pela paisagem que conhecia desde sempre, desde que se conseguia lembrar de si próprio. O farol ao longe, as escarpas, o voar das gaivotas, o desenho da praia na maré baixa, até as vagas, sendo novas lhe eram familiares. Conseguia encontrar uma história em cada uma delas sem pressa, sem grande esforço. Várias histórias que conseguiam construir a História de uma vida. Os primeiros Verões entre panamás, baldes e pás, gritaria de irmãos e primos, avós avisadoras, tias solteiras de beijo fácil e lambuzado, sestas forçadas, gelados no fim do dia. Olhou de revés para se certificar que a velha mesa redonda com os retratos ainda ali estava, no canto da sala onde sempre esteve. Tentou encontrar as tias, novas de vestidos leves e claros, sorriso aberto a preto e branco. Estavam lá embora fosse mais lento a encontrar os seus nomes do que as poses para a posteridade. A primeira braçada fora de pé, a adrenalina de conquistar um mundo enorme até aí inacessível, o grito triunfante do esqueleto pré-adolescente em jeito de aviso aos emissários atlantes. Depois um mergulho num sonho enquanto o corpo crescia sem se dar quase por isso. Os amigos, as fogueiras nocturnas, o primeiro cigarro, as motas, as namoradas, o surf. Ah, o surf. A segunda dose de libertação que o libertou a conta gotas ao longa daquela vida sem sentido. Os momentos de reflexão e paz conseguidos em flutuação, agitação, remadas de existência. Apesar da hérnia, apesar do reumático, apesar de muito o querer acabou por ser obrigado a guardar a memória na prancha velha que apodrecia na garagem. Olhou para o fundo onde se erguia a grande cidade. Conseguia imaginá-la sem esforço envolvida em doses industriais de pessoas, automóveis e gases mortíferos. A cidade no Natal. A mãe, o pai… Voltou a espreitar para a mesa redonda das fotografias. Ainda ali estavam. Partidos há muito mas presentes nas memórias, nas breves recordações, nas gargalhadas colectivas com os irmãos naquela mesma sala. Nunca morrem aqueles que amamos. Estão sempre connosco aqui ou no outro lado, seja lá onde isso for. Era Natal em frente ao mar. A televisão chamou-lhe a atenção com uma música antiga dos 20 anos. Agora só conseguia ver dois canais: o dos filmes e o dos sucessos antigos, fechando o mundo em recordações ou obras de arte que o tivessem ajudado a conhecer o mundo, a conhecer-se a si. A música trouxe-lhe recordações e o beijo de uma mulher. O nome levou mais alguns segundos a chegar mas o seu cheiro não. O seu sabor, as corridas desenfreadas entre dois mundos que se aprendem à força de tacto… e ficou feliz por se recordar. Que seria feito dela agora? Estaria cheia de filhos a preparar a Ceia? Já teria netos? Estaria ainda viva? É impressionante como se perde o rasto das pessoas. Como esquecemos as suas memórias no ficheiro da lembrança e de como voltamos a ele sem perceber que já passaram tantas eternidades…como se ainda ontem os tivéssemos visto.
Voltou a olhar o mar com a mente limpa, repleta de vácuo. Tinha que se vestir. Tinha prometido à irmã, aos sobrinhos. Tinha prometido qualquer coisa onde se incluía a sua presença. Já não se lembrava bem a que horas. Não interessa, pensou, hei-de ir. Desta vez tenho que ir. Celebrar o Natal sem os pais, doía-lhe. Arranjava desculpas, trabalho, famílias de companheiras da altura, qualquer coisa. Doía-lhe a falta dos pais e de vários amigos. Doía-lhe principalmente uma vida estúpida e com muito pouco sentido que lhe tinha sido apresentada ainda muito novo. Fez o que se esperava dele. Estudou em vez de vadiar, foi ao psicólogo em vez de se suicidar, teve filhos em vez de ser egoísta, trabalhou em vez de roubar. Doía-lhe principalmente o “para quê” de tanto sacrifício, tanto sapo engolido, tantas lágrimas de tantas dores dispensáveis. Nunca esteve bem na sua pele talvez porque se interrogou demasiado, deixou que a consciência tomasse conta dele, o tiranizasse até um beco sem saída. Ver o problema e saber-se impotente para o conseguir resolver…mais valia ser cego. Sim, doía-lhe a vida. Apesar de naquela manhã de Inverno mediterrânico à frente do mar já não lhe doer. A idade, a afinidade com o mar, a inteligência…e um tumor na cabeça recentemente diagnosticado sem hipótese de cura. Não estava triste e muito menos infeliz. A palavra certa para aqueles dias era “aliviado”. Aquele seria certamente o último Natal da sua vida, por isso tinha que estar a determinada hora em casa da irmã. Não para se despedir, não para fazer um anúncio dramatizado da sua morte mas apenas para estar com eles. Porque os amava. Não havia nada de errado na sua condenação. Ela estava lá desde o dia em que nasceu. Como todos. A dose de sofrimento que lhe tocou também não era nenhuma exclusividade. A outros doeu mais e com mais força. Sabia isso tudo…por isso é que tinha consciência de perceber. Que se vive e se morre e que nada do fica faz sentido nenhum. Cumpre-se apenas um ciclo, o princípio e o fim de uma existência.
Brevemente estaria ele naquela mesinha redonda da sala entre os retratos das tias, dos avós, dos pais. “Bem-vindo ao clube”, sorriu para dentro de si. Olhou o mar mais uma vez. Ali estava, muito antes dele, ali continuaria muito depois. Mais um amigo que deixava. Ergueu a caneca cheia de café no ar em jeito de brinde:
“Paz na terra aos bacanos que eu vou ter que me ir embora com boa vontade…”

ARTUR GUILHERME CARVALHO

5 comentários:

Yanneck disse...

Um abraço natalício com votos de excelente 2009...

Artur Guilherme Carvalho disse...

E um grande abraço também para ti Janeca.
ARTUR

A.Teixeira disse...

Um Bom Natal para ti, ARTUR.

Clarice disse...

"Frente ao mar" ... já li muitas vezes, também engoli em seco algumas, deliciei-me com as memórias... "Nunca morrem aqueles que amamos.
Chorei com a verdade ..." É impressionante como se perde o rasto das pessoas."
Admirei os "laços"... "Tinha prometido à irmã, aos sobrinhos. Tinha prometido qualquer coisa onde se incluía a sua presença."
E por fim, sorri com o sonho mesmo à nossa nossa frente: a infinitude de um mar... por mais que se conheça nunca se descobre na sua plenitude... e assim ao olha-lo encontramo-nos, mesmo com os que já partiram... ou com os que ainda não chegaram...

Belas palavras Artur, Feliz Natal!

*o comentário ficou muito grande, sorry.

Artur Guilherme Carvalho disse...

António: Estive a trabalhar desde 24 até hoje 27. Daí os meus votos natalícios atrasados. Obrigado e 1 abraço.
Clarice:Primeiro são as palavras, a seguir são as emoções. Por fim é a solidariedade, a analogia, o reconhecimento de um irmão. Eis a Literatura. Se serve para alguma coisa, que seja para abraçar ou beijar o leitor. E que o calor das palavras se continue a transmitir. Bom Natal
ARTUR