segunda-feira, 17 de março de 2008

CRÓNICA ANTIGA


A FILHA DO CAPITÃO

José Rodrigues dos Santos

Ed. Gradiva, 2004


Vivemos tempos tristes e cinzentos, onde a breve imagem da esperança tem contornos pouco nítidos e muito poucas razões para aparecer. Sinal sintomático deste estado de espírito é a popularidade com que têm sido recebidos pelos leitores os romances de reconstituição histórica. Por alguma razão preferimos vasculhar um tempo a que não pertencemos e viajar por universos distantes, satisfazendo a nossa curiosidade e enriquecendo o nosso património através desse espaço e dessa alma que dividimos com os antepassados. Primeiro foi “Equador” de Miguel Sousa Tavares, um êxito de vendas que já teve direito a tradução para inglês. O livro centrava-se nos últimos tempos da monarquia, no virar do séc. XIX para o séc. XX, e terminava em 1908, ano do regicídio. Aberta a porta dos romances de reconstituição histórica escritos por autores portugueses, o livro de que hoje vos queria falar chama-se “ A Filha do Capitão” e, com intenção ou sem ela, o facto é que se desenrola num tempo que prolonga o tempo de “ Equador”. Ou seja, embora tendo início no final de novecentos, a acção vai um pouco mais longe, visita a I Guerra Mundial e termina no final da década de 20 do século passado. Outro romance de reconstituição histórica e outro êxito garantido ( quando me chegou às mãos ia já na 5ª edição).
“ A Filha do Capitão”, de José Rodrigues dos Santos é na sua essência uma história de amor contada num enquadramento histórico rigoroso e exaustivamente descritivo que no entanto, não consegue parar de surpreender e agarrar o leitor até à ultima página.
A história fala-nos de Afonso Brandão e de Agnés e do percurso improvável que os fará encontrar por força das circunstâncias. Ele, nascido numa aldeia do Ribatejo, quinto filho de um modesto agricultor, produtor de vinho. Ela uma jovem francesa de Lille, filha de um comerciante de vinho. Um e outro vão crescendo na viragem do século XIX para o século XX, assistindo aos prodígios das novas tecnologias, amplamente documentados na Exposição Universal de Paris. A electricidade, o automóvel, as primeiras máquinas voadoras, o animatógrafo, as novas e arrojadas conquistas arquitectónicas, tudo acontece a uma velocidade vertiginosa, antevendo-se um futuro radioso de prosperidade. Para além de ambos terem os pais envolvidos na produção e comercialização de vinho, Afonso e Agnés têm ainda em comum uma atitude semelhante perante a vida. Tanto um como outro vão crescendo até à idade adulta sem que a sua vontade própria se manifeste em relação às escolhas decisivas das suas vidas. Afonso escapa a um quase certo e inevitável destino de pobreza e trabalho duro nos campos, caminho seguido pelo seu pai e pelos seus irmãos. Uma mãe zelosa pelo futuro da sua filha, vendo que Afonso, um pé descalço, se aproxima demasiado dela resolve mandá-lo para o seminário. Afonso parte assim ainda miúdo para Braga e, quando regressa é outra vez desviado, desta vez para a Escola de Guerra. Contra todas as possibilidades, Afonso torna-se oficial do Exército Português, acabando por ir parar à Flandres no momento da I Guerra Mundial.
Agnés por seu turno, tem uma infância despreocupadamente burguesa, vem estudar Medicina para Paris e casa com o seu primeiro amor. A guerra vem destruir-lhe toda a sua inocência ou o que dela restava. O seu casamento não dura um ano, o seu marido morre nas trincheiras e Agnés vê-se impedida de regressar a Lille em virtude da ocupação alemã. Sozinha, viuva e sem poder recorrer à familia , Agnés encontra um amigo do pai que inicialmente se oferece para lhe dar abrigo em sua casa. Mais tarde propõe-lhe um casamento de “fachada”, perfeitamente consciente de que entre eles não haveria espaço para grandes paixões. Agnés aceita indiferente.
Vemos assim que os personagens principais, praticamente até se cruzarem no meio da narrativa, não têm ou não exercem vontade própria, limitando-se a seguir a maré ao sabor dos acontecimentos. É a paixão entre ambos que os acabará por “libertar”, por assim dizer.
Enquadrada num já referido e amplamente documentado rigor histórico descritivo, as opiniões, as acções que constituiam a mentalidade da época são-nos reveladas pelos personagens secundários. Os monárquicos, os republicanos, a Igreja Católica e, principalmente, a grande divisão entre os portugueses acerca da sua participação na guerra. A passagem da Afonso pelas trincheiras constitui também um excelente documento literário ilustrativo do inferno e do sofrimento que foi para as tropas portuguesas a sua passagem pela I Guerra Mundial. Primeiro o poder político tudo fez para estar ao lado dos ingleses com a desculpa que, se não o fizesse, perderia irremediavelmente a posse de uma grande parte do seu império colonial. Por outro, uma vez na guerra esqueceu-se dos seus soldados, de os render em tempo útil, de os equipar e abastecer convenientemente, etc, etc. A título de exemplo veja-se o episódio em que, na sequência de um ataque às trincheiras alemãs, os nossos soldados vêm os alojamentos inimigos e ficam completamente extasiados. Era como se os outros vivessem num hotel de luxo comparado com as suas instalações, onde se viam obrigados a dormir no meio da lama e das ratazanas.
A minuciosa descrição das trincheiras, dos combates e do dia a dia das nossas tropas é mais um motivo de reflexão sobre a nossa história recente. O próprio autor é neto de um veterano dessa guerra. Por fim a batalha de La Lys, o massacre dos alemães sobre as nossas posições e sobre os ingleses. Uma descrição visual alucinante, digna de um filme. “ A filha do Capitão” é a um tempo uma história de amor, uma visita ao passado e um excelente documento de reconstituição de um país que há quase 100 anos embarcou numa aventura que não lhe dizia respeito, não para reclamar o que não tinha, mas para manter o que já lhe pertencia...


ARTUR GUILHERME CARVALHO

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