terça-feira, 2 de janeiro de 2024

PELA ÁGUA


 

Dedicado a Itzíar, a mulher que inventou um escritor


 

1 + 1 = 1

 

A nostalgia do poeta mergulha-o numa melancolia tão profunda, num langor tão glauco, numa amargura tão dolorosa que o sol lhe parece estar sempre velado. Essa nostalgia embebe a luz do filme, penetra as paisagens e estende sobre as personagens um manto húmido de fria desolação. É natural que assim seja; em "Nostalghia", Andrei Tarkovski exorciza a sua própria história, o seu próprio desgosto. Com efeito, tal como a personagem principal (chamado, relembremos, Andrei) o poeta que passa por Itália a fim de recolher informações sobre um músico russo do século XVIII, Tarkovski é um exilado. Tendo que se afastar do seu país natal para assegurar a sobrevivência e continuidade da sua obra, não cessa de viver o desgosto desse exílio, de ir beber numa fonte desaparecida na sua memória, de implorar o passado; uma tarefa ainda mais excruciante uma vez que a sua arte se apoia na inspiração da cultura do país do qual teve que fugir.

Mas, fiel ao aforismo de Saint-Exupéry que afirma que a nostalgia é o desejo de não se sabe o quê, o mal de que sofre o autor não se resume à separação geográfica, por muito dilacerante que ela seja; é também, é sobretudo espiritual .Porque o que desejam os dois Andrei, é de reintegrarem não a casa paterna, nem o seio materno, mas antes esse Paraíso perdido de uma fé cega. Aquilo que procuram, é  regressar muito atrás, ao tempo em que Deus e o Homem viviam lado ao lado, ao abrigo da chuva e do cinismo.

Essa sede do absoluto, essa nostalgia metafísica, assola ainda mais brutalmente Domenico, o eremita meio-louco, meio-sábio que Andrei encontra no curso das suas pesquisas. Enquanto Andrei enterra silenciosamente o seu sofrimento, passeando-se num país que o entorpece mais do que o encanta, Domenico grita aos quatro ventos a sua angústia. Pendurado na estátua de Marco Aurélio na escadaria do Capitólio em Roma, arenga os ouvintes, alertando-os contra a excessiva vaidade da sociedade materialista, exortando-os a reencontrarem esse momento da História em que nos desviámos do caminho justo, antes de ele mesmo se imolar pelo fogo. Tal como Pierrot Le Fou, que se suicida com dinamite a fim de gozar a Eternidade, curará as suas dores abdicando da vida. Será a morte o único modo de acalmar a nossa alma ? Duvide-se; com efeito, se para Tarkovski a vida sem fé é um inferno, a morte não é a solução. Na atroz agonia das chamas, ao som do "Hino à Alegria" de Beethoven, num fracasso monumental, Domenico não encontra repouso nem paz. Isso, sabe-o Andrei. Numa longa sequência hipnotizante - e uma das mais belas sequências cinematográficas de todos os tempos - vai atravessar a longa piscina dos banhos com uma vela acesa, tentando proteger a frágil luz da sua crença contra todos os ventos do mundo. Quando falha, nós falhamos com ele. Quando consegue, é toda a Humanidade que se redime. Tal como Sísifo, confere sentido aí, onde só havia absurdo.

Tal como a sua crença, o cinema de Takovski é um cinema extraordinariamente exigente. Não se vai até ele sem um acto inicial de despojamento. Os seus filmes abrem-se sobre as nossas cabeças como catedrais, e todo o supérfluo faria figura de sacrílego. E, sobretudo, é uma arte poética, feita de uma sensualidade quase palpável: a água, omnipresente, deslava as cores da película; o fogo acaricia a obscuridade, mais do que a desvanece; a brisa acaricia as velhas pedras; a erva, verde como a esperança, verde como o desgosto e longa como a cabeleira das mulheres, nada entre a Terra e o Céu, a sombra e a luz - em suma, a Natureza ela mesma vacila, bela como uma promessa ou lúgubre como o Nada. É desse modo que o filme balança entre a madrugada e o crepúsculo, acordando com o orvalho ou agonizando sob a chuva. Ao caos da realidade, Tarkovski opõe a ordem dos poemas, a absoluta beleza do reencontro, do recentramento para que aponta a inscrição na parede da casa de Domenico invadida pela chuva: 1+1=1. E, é claro, a eternidade de um homem e de uma mulher que, quando falam,  não expressam outra coisa senão aquilo que sentem um pelo outro. 

2 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Belo texto