quinta-feira, 9 de abril de 2015

LIKE SOMEONE IN LOVE



(Edição DVD, Público)



Em 2008, depois da realização do muito belo "Shirin", Abbas Kiarostami deixou o seu país para prosseguir a sua carreira no estrangeiro. Ora, na abundante filmografia do cineasta, o Irão é muito mais que um décor: o Irão, a sua cultura e história recente, está no coração de cada filme - inclusivamente num filme dito experimental como "Ten" : é na relação profunda com o seu seu país que Kiarostami nos pareceu sempre encontrar a sua inspiração. Esse exílio (voluntário ?) viria a esgotar a verdadeira fonte de inspiração do cineasta ? A resposta viria em 2010 com "Copie Conforme", um filme que os admiradores do cineasta (entre os quais me incluo) consideram como a obra de um autor autêntico que conseguiu evitar as armadilhas da co-produção, propondo-nos um novo capítulo, belo e fascinante, da sua obra.
"Like Someone In Love" apresenta-se como um desafio ainda mais difícil: co-produzido com a França, filmado no Japão com actores japoneses, o filme apoia-se num argumento original no qual Kiarostami pratica uma depuração temerária, quase insana. Quase nada nos diz das personagens, da sua vida, dos seus gestos; o espectador não tem outra saída senão entregar-se a um verdadeiro trabalho de reconstituição: compreendemos desde cedo, e aproximativamente, que Akiko, jovem provinciana vivendo em Tóquio, se prostitui para pagar os estudos de sociologia; que o velho homem que solicita os seus serviços é um professor reformado; que o seu noivo é dono de uma oficina de automóveis. Mas tudo isso, para falar francamente, é de uma relativa importância, mesmo que o Japão actual aí se revele astuciosamente. Na verdade, tudo se passa algures, numa espécie de movimento subterrâneo  que a brilhante "mise-en-scène de Kiarostami, com um ponto de vista falsamente neutro, nos faz descobrir na nossa cegueira.
A sequência de abertura, um longo plano fixo, plasticamente sobrecarregado, é exemplar da escrita do filme e da intenção do cineasta nos dizer o mínimo dos mínimos, propondo-nos sentir as coisas antes de as tentar compreender. Nesse plano, do qual o elemento principal é uma conversação ao telemóvel de que não vemos a proprietária, Kiarostami filma o reflexo (sonoro e visual), de preferência ao objecto : todo o filme será assim sobredeterminado pela escolha de nunca ver as coisas de face, mas sempre por refracção - na janela do professor, no pára-brisas ou no capot levantado do carro e mesmo através da cortina da vizinha que subitamente aparece como um filtro à frente da objectiva da câmara. Esse jogo de reflexos, que não deixa de evocar o mistério e a poesia das imagens do Kiarostami fotógrafo, torna-se rapidamente o local de ancoragem do filme, o cineasta, mestre incontestável da filmagem no espaço restrito e constrangedor de um carro, entrega-se de novo a essa figura : o Volvo do professor é o espaço no qual as três personagens se entregam, verdades e mentiras confundidas, e o táxi o local onde Akiko realiza o silencioso balanço da sua vida. Mais ainda, o apartamento do velho professor, como  o bar nocturno da sequência de abertura, são filmados da mesma maneira, insistindo na sua exiguidade - mesmo a oficina do novi é um espaço opressivo.
Quase parece que Kiarostami sente um prazer perverso em frustrar o espectador (mostrando-lhe que o importante está algures) jogando com mal-entendidos que atravessam a narrativa: assim, jamais saberemos o que se passou na noite em Akiko dormiu em casa do professor. Talvez seja preciso encontrar a resposta em Yasunari Kawabata que, em "A Casa das Belas Adormecidas", contava as noites de velhos homens passadas ao lado de adolescentes narcotizadas. Enfim, tudo pode não ter passado de um sonho, de um sonho intensamente belo. Poderia, não fora a sequência final, de uma violência enigmática, talvez a mais críptica de toda a história do cinema. Nunca o saberemos.


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