terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

O CAVALO DE TURIM




















Lançado em DVD pelo jornal público (dia 06 de Fevereiro de 2015), o visionamento deste filme nesse suporte suscitou-me reflexões que, na altura do seu lançamento em sala, tinham ficado obscurecidas pela magnitude e irredutibilidade deste objecto estranho, irredutível e singular. Ei-las:

"Em Turim, em 1889, Nietzsche abraça um cavalo de tiro esgotado e perde depois a razão. Algures, no campo : um quinteiro, a sua filha, uma carroça e um velho cavalo. Lá fora levanta-se o vento". Esta é a rudimentar sinopse que consta da capa do DVD. A história é tão simples como seu resumo. Apesar de tudo, a anedota lacónica não corresponde à complexidade de ideias que evoca. Não saberemos nada do destino do filósofo, já que a atenção do cineasta se concentra sobre o destino do cavalo, do cocheiro e da sua filha que vivem numa quinta isolada, no meio de terras áridas varridas pelo vento.

A tempestade desenrola-se enquanto a pileca sobe penosamente uma encosta. Esta sequência inicial dura alguns minutos, acompanhada de uma música repetitiva e sombria que aumenta a desolação, até à crueldade que o espectador liga a cada movimento do animal esgotado, do seu corpo torturado pelo esforço. A estrada, através de campos lamacentos, transforma-se num calvário e anuncia já a dimensão simbólica do filme. Ecos filosóficos ressoam aqui a partir do concreto e do detalhe tão minuciosamente expostos que o espectador se impregna da cada gesto, sofre as flagelações intermináveis da tempestade, enche os ouvidos com os silvos sinistros, vive na lentidão de uma vida totalmente miserável. Não há nada que o distrai, só a aceitação da dor de um quotidiano sem esperança.

O que Béla Tarr quer revelar é o sentido profundo da existência que desliza para o seu declínio inexorável, encontrando um paralelo neste tipo de manifestação artística votada ao desaparecimento no mundo moderno : o cineasta teve a coragem de criar uma imagem lúcida e desesperada que apela à constância do espectador no seu seguimento e descodificação. A sua voz é absolutamente radical, uma voz que não faz qualquer concessão, sempre fiel ao seu estilo, à sua visão pessoal sem cores que embelezem a visão lúgubre, deliberadamente escolhida e cultivada, compondo uma história que se compõe de seis dias monótonos de um homem e e uma mulher que vivem na mais extrema miséria material, fazendo o seu trabalho quotidiano com gestos precisos e resolutos, trabalho sempre idêntico : atrelar o cavalo, retirar a água de um poço que se vai esgotando, tomam uma refeição silenciosa composta por uma única batata, a filha vestindo o pai com um braço paralisado. Este ritual mudo diz tudo sobre a relação humana e íntima entre pai e filha. Esta cumpre o seu dever enquanto o pai a olha com um só olho: um olhar intrigado, severo e concupiscente, olhar enigmático que exprime o seu único interesse na vida, portanto estranho, comparável ao olhar misterioso do cavalo moribundo que não precisa de palavras para justificar a sua existência.

A tristeza pesa sobre cada ocupação quotidiana. Longas sequências nas quais os camponeses quedam imóveis frente à janela acentuando esta insuportável melancolia. A impecável ordem quotidiana parece ser a única força que prende à vida esses dois seres votados à morte. Essa disciplina é de tal modo rígida e cerimonial que a miserável habitação com a sua liturgia profana parece um templo abandonada. O homem  atém-se aos ritos, mesmo quando eles perderam todo o sentido.

Béla Tarr mergulha-nos nesse ritmo invariável em que cada coisa trivial encontra o seu lugar. Desce até aos fundamentos da existência despojada, até ao fundo da miséria, aí onde uma carroça, um cavalo, uma cadeira e uma camisa permanecem como os únicos signos da sobrevivência enquanto signos do quotidiano. O cineasta não cede a nenhuma tentação para aliviar a sua poética : as suas longas tomadas de vistas formam uma duração musical impressionante sob o feitiço da tempestade sem fim  e as brumas que envolvem tudo no cinzento. A sua angústia, o seu "mal de vivre" aproxima-o de Tarkovski. No entanto, a sua voz é ainda mais tenebrosa; a da submissão total e última a uma condição que exclui a palavra e a revolta.

Esses seis dias de que falei atrás, seis dias de um lento declínio, correspondem aos seis dias da Criação. Aqui, neste mundo sem Deus e sem luz, o homem carrega o seu destino ao mesmo tempo que o realiza. A história aparentemente banal ganha uma dimensão bíblica. Apenas algum esclarecimentos são trazidos pela voz off a situam num contexto mais amplo. O silêncio dos dias pontuados sempre pelas mesmas actividades, as vastas planícies desoladas na tormenta, algumas palavras expelidas pela mulher que lê a narrativa de um templo dão ao conjunto um sentido simbólico e essencial. Os poucos eventos que ocorrem sublinham esse sentido, particularmente a visita imprevista de uma personagem inspirada que se perdeu nesta região deserta. Faz a sua irrupção na casa com um discurso subversivo sobre a destruição premeditada por inimigos anónimos de tudo aquilo que foi nobre e sublime no mundo. No entanto, essa força hostil não é nomeada, o que sugere um contexto político, mas não definido. Profeta ou emissário, o homem passa como vento sem deixar, aparentemente, traços no espírito dos camponeses. O sexto dia aproxima-se e a luz não mais brilha. Os miseráveis queda-se no escuro sem nada dizerem : é o tempo da morte. Na estrebaria, o cavalo está inerte, ele que, antes dos homens, se tinha recusado a comer e beber. Os seus olhos, cheios de uma infinita paciência, estão também cheios de enigmas. Que teria Nietzsche sentido quando se atirou ao seu pescoço num gesto revoltado contra a submissão cruel do animal sob os golpes do chicote ? Compaixão, raiva, desespero ? Sentiu sem dúvida o peso da desgraça intolerável, desgosto sem palavras ante a morte quando já nada há a esperar da vida. Nesse morno olhar animal, imaginamos toda a cena que fez colapsar o filósofo na demência, a sua última rebelião suicidária contra a existência que não exige nenhuma justificação. O cavalo sofre a sua sorte até ao fim, como o homem e a mulher que partilham a miséria na compaixão : os seus destinos estão ligados, absurdos, inumanos e humanos ao mesmo tempo. Uma única coisa é segura e inevitável : toda a força vital se estiola. O que muda, é o modo como se enfrenta o declínio. A questão essencial para Béla Tarr tocaria assim os limites da humanidade. Aparentemente, não existe nenhuma escapatória e a fuga ou qualquer solução não são mais do que provisórios expedientes para salvar a vida. Chega enfim o último dia, essa eucaristia sem Deus, já que o homem se fixa no seu alimento terrestre sabendo que ele não o salvará.

Se bem que a imagem cinematográfica se imponha com a sua linguagem única que não reclama interpretação fora da sua própria estilística auto-suficiente, ficamos intrigados e colocamos questões que ficarão sem resposta, sobretudo porque se tratam de questões essenciais sobre os limites da humanidade. Aqui, o o homem parece partilhar a sua condição com o animal numa situação de extrema penúria, não sendo a revolta não podendo ser elemento distintivo da sua humanidade. Onde fica então a sua dignidade ? O que permanece do humano nesta terra devastada e estéril ? A resistência, o automatismo, a ordem estabelecida para perpetuar ou imitar apenas a vida ? Terá o homem necessidade do sublime e do criativo para se nomear homem ? O que resta dos ritos sagrados no quotidiano mais simples e miserável. E Deus ? Esconde-se nos elementos hostis, na palavra, em cada gesto, em cada objecto ? A sombra de Nietzsche plane sobre esta história simples e difícil, sem respostas (mas que permite que façamos as perguntas), uma história ordinária e simples que é o seu contrário : complexidade inextricável, dor aguda, crueldade e compaixão, luz e noite.

1 comentário:

a片卡通版影片 disse...
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