É neste cenário que começa uma
das mais estranhas aventuras literárias de José Cardoso Pires, “Alexandra
Alpha”. Do alto de um morro da cidade do Rio de Janeiro, um homem inicia o seu
voo em Asa Delta. Descrito como um anjo louro, ia planando sobre os prédios e
as praias da cidade até que a graciosidade do seu voo é de súbito interrompida,
precipitando-se a queda vertiginosa e o impacto final da sua morte violenta
sobre um grupo de rochedos no litoral conhecidos como Ponta do Arpoador. Para
trás deixa um filho igual a ele entregue a uma ama negra da periferia, uma
namorada com quem coabitava, uma ex-mulher detida num presídio e uma longa
carreira de playboy. A namorada, uma portuguesa a trabalhar no Brasil, acabará
por regressar a casa trazendo consigo Beto, o filho do anjo.
A narrativa que se segue decorre
em pleno processo revolucionário, ou no seu rescaldo, no momento em que
Portugal procura assentar da poeira da revolução. Nesse conturbado período a
inevitável confrontação do Passado e do Presente, as utopias e gestação e a
violência revolucionária ocupam a ordem do dia. Para Alexandra e o seu grupo de
amigos, por uma razão ou por outra, não há grandes ilusões dignas de registo. A
bebedeira da ilusão de um mundo novo (se alguma vez existiu) cai rapidamente
numa ressaca incómoda. No bar onde se costumam encontrar mantêm um mundo só
deles feito de escárnio e descrença, afastamento e desilusão. Alimentam as
conversas com cenários novos mas fazem-no apenas para ter alguma coisa sobre a
qual comunicar. Rapidamente se reduz tudo e mais alguma coisa à mais
indiferente insignificância, seja ela a novidade da política, o acontecimento
desportivo ou mesmo os aspectos da vida de cada um deles. Vão vivendo assim,
entre copos de whisky e ambiente escuro de ar condicionado como quem nem deseja
ser incomodado pela realidade nem sequer fazer parte dela…ou de coisa alguma. E
não há nisto algum complexo de superioridade, tão só um refúgio, um isolamento,
uma forma de empurrar o tempo para a frente. Vivem a sua cultura e
intelectualidade como únicos alimentos necessários para continuar a acordar no
dia seguinte. O resto não lhes interessa.
Mas a vontade de não querer fazer
parte do mundo em que vivemos, inventando outro mundo muito mais confortável,
não nos protege nem nos torna imunes à realidade. E essa mesma realidade
acabará por se fazer notar nas suas vidas por vezes de maneira brutal. Como
Alexandra e alguns amigos que acabarão por perder a vida num acidente de
aviação, fruto de sabotagem.
O voo do anjo que inaugura a
narrativa acaba por ser a parábola de um tempo. Da harmonia e grandiosidade do
voo planado sobre os céus da cidade para o trágico desfecho da queda e morte do
anjo. A mesma coisa se poderia dizer sobre uma revolução que transbordou
alegria e esperanças sem fim sobre o futuro, um momento único na história dos
povos, e que, como todos os momentos mágicos da Humanidade rapidamente se
desfez, se despenhou e morreu para deixar entrar as forças da normalidade…
Artur
Sem comentários:
Enviar um comentário