domingo, 27 de abril de 2014

NAS ASAS DE UM MELRO CURTIDO



O homem acordou naquele dia sentindo-se neutro de estado de espírito. Segurando a sua eterna caneca de café distraiu-se a olhar pela janela a rua tranquila de um Domingo de manhã. Passava mais um ano desde que tinha chegado a este planeta pela primeira vez. Podiam passar cem anos que algumas coisas nunca mudariam como, por exemplo, o seu espanto pela irracionalidade suscitada perante este ou aquele aspecto da vida humana. Sempre se sentiu como uma espécie de estagiário desajeitado e voluntarioso que tentava em vão aplicar conceitos tão óbvios quanto impossíveis, desmontados pelas razões mais absurdas que poderiam haver. Era um perfeito incompetente a lidar com o Presente, demasiado agarrado, demasiado dependente do Passado. Talvez porque se no primeiro tudo podia acontecer, no segundo todo o processo estava concluído, arrumado e ordenado por ordem de relevância. No seu caminho até ao dia de hoje oscilava entre o guerreiro intrépido e voluntarioso e o deprimido desesperado e triste. Graças à terapia tinha aprendido a navegar o seu barco emocional nas águas que separam esses dois estados extremos, a sinalizar e a conviver com os seus fantasmas para melhor poder equilibrar-se. Uma tarefa nunca acabada a exigir concentração e lucidez em estado permanente. Questões de solidão, questões de medo, questões de altos e baixos, tempestades e águas calmas, obrigação de percorrer esse caminho, atravessar esse vale a que chamam existência, vida.
De qualquer maneira, começava a ficar cansado de tanto racionalizar, de tanto tentar compreender, de tanto falhar. Estava cada vez mais perto daquela caneca matinal de café ou do fumo do cigarro que bailava ao sabor do vento. Porque existiam apenas, sem se ralarem com coisa nenhuma. Do outro lado da rua um melro habitual pousava nos ramos da árvore. Comunicava com ele saudando-o com os bons dias sem articular uma palavra e tinha quase a certeza de que o melro respondia. Olhando-se em paz, sentindo-se próximos. Tinha também a certeza de que se lhe tentasse perguntar o significado da existência ele responderia com um salto de um ramo para o outro ou com uma cagadela para cima de um carro estacionado. As suas asas negras e o seu bico amarelo resplandeceriam ao Sol como faziam todas as manhãs sem se importar com mais nada. Ele ensinava que isto aqui não é para perceber mas para sentir, como um beijo ou uma estalada na cara. As emoções são a nossa maior e única lição que temos para aprender. Com elas acende-se a central de informação mais importante do nosso Ser, acendem-se os estados de espírito depois dos quais avançamos para qualquer coisa diferente. Era o que fazia há muitos anos sem se dar conta, ao escrever os seus livros. Um artífice de emoções especializado em as traduzir para palavras. De tudo o que havia para recordar ficavam a família, os amigos, os melhores e os piores momentos da sua existência. Porque foi aí que percebeu que já não era o mesmo que tinha sido, que se transformava noutro mais completo.
E com toda esta aprendizagem tudo era muito mais relativizado, tudo era passível de vir parar àquelas águas que separam a euforia da depressão. Tudo era aceite e encaixado de uma forma mais harmoniosa…até a morte. Não conseguia compreender a morte, ficando várias vezes deprimido com essa incompreensão. Por mais que lesse, por mais que ouvisse, por mais que sentisse, nunca conseguiu encontrar nela uma razão forte, uma explicação plausível, uma tranquilidade lógica. Até ao dia em que um dos seus mestres lhe explicou que ninguém a compreendia. Mas isso não era importante na medida em que também ninguém conseguia compreender a vida. Talvez aquele melro matinal soubesse alguma coisa, talvez nas suas asas tivesse escondido o segredo por desvendar. Mas não o podia revelar a não ser saltitando de um ramo para o outro, cagando de alto sobre um carro estacionado. Talvez, se o melro conseguisse falar, me dissesse depois qualquer coisa parecida com: “Ainda não percebeste? Queres que te faça um desenho?”

Artur


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