O homem acordou naquele dia
sentindo-se neutro de estado de espírito. Segurando a sua eterna caneca de café
distraiu-se a olhar pela janela a rua tranquila de um Domingo de manhã. Passava
mais um ano desde que tinha chegado a este planeta pela primeira vez. Podiam
passar cem anos que algumas coisas nunca mudariam como, por exemplo, o seu
espanto pela irracionalidade suscitada perante este ou aquele aspecto da vida
humana. Sempre se sentiu como uma espécie de estagiário desajeitado e
voluntarioso que tentava em vão aplicar conceitos tão óbvios quanto
impossíveis, desmontados pelas razões mais absurdas que poderiam haver. Era um
perfeito incompetente a lidar com o Presente, demasiado agarrado, demasiado
dependente do Passado. Talvez porque se no primeiro tudo podia acontecer, no
segundo todo o processo estava concluído, arrumado e ordenado por ordem de
relevância. No seu caminho até ao dia de hoje oscilava entre o guerreiro
intrépido e voluntarioso e o deprimido desesperado e triste. Graças à terapia
tinha aprendido a navegar o seu barco emocional nas águas que separam esses
dois estados extremos, a sinalizar e a conviver com os seus fantasmas para
melhor poder equilibrar-se. Uma tarefa nunca acabada a exigir concentração e
lucidez em estado permanente. Questões de solidão, questões de medo, questões
de altos e baixos, tempestades e águas calmas, obrigação de percorrer esse
caminho, atravessar esse vale a que chamam existência, vida.
De qualquer maneira, começava a
ficar cansado de tanto racionalizar, de tanto tentar compreender, de tanto
falhar. Estava cada vez mais perto daquela caneca matinal de café ou do fumo do
cigarro que bailava ao sabor do vento. Porque existiam apenas, sem se ralarem
com coisa nenhuma. Do outro lado da rua um melro habitual pousava nos ramos da
árvore. Comunicava com ele saudando-o com os bons dias sem articular uma
palavra e tinha quase a certeza de que o melro respondia. Olhando-se em paz,
sentindo-se próximos. Tinha também a certeza de que se lhe tentasse perguntar o
significado da existência ele responderia com um salto de um ramo para o outro
ou com uma cagadela para cima de um carro estacionado. As suas asas negras e o
seu bico amarelo resplandeceriam ao Sol como faziam todas as manhãs sem se
importar com mais nada. Ele ensinava que isto aqui não é para perceber mas para
sentir, como um beijo ou uma estalada na cara. As emoções são a nossa maior e
única lição que temos para aprender. Com elas acende-se a central de informação
mais importante do nosso Ser, acendem-se os estados de espírito depois dos
quais avançamos para qualquer coisa diferente. Era o que fazia há muitos anos
sem se dar conta, ao escrever os seus livros. Um artífice de emoções
especializado em as traduzir para palavras. De tudo o que havia para recordar
ficavam a família, os amigos, os melhores e os piores momentos da sua
existência. Porque foi aí que percebeu que já não era o mesmo que tinha sido,
que se transformava noutro mais completo.
E com toda esta aprendizagem tudo
era muito mais relativizado, tudo era passível de vir parar àquelas águas que
separam a euforia da depressão. Tudo era aceite e encaixado de uma forma mais
harmoniosa…até a morte. Não conseguia compreender a morte, ficando várias vezes
deprimido com essa incompreensão. Por mais que lesse, por mais que ouvisse, por
mais que sentisse, nunca conseguiu encontrar nela uma razão forte, uma
explicação plausível, uma tranquilidade lógica. Até ao dia em que um dos seus
mestres lhe explicou que ninguém a compreendia. Mas isso não era importante na
medida em que também ninguém conseguia compreender a vida. Talvez aquele melro
matinal soubesse alguma coisa, talvez nas suas asas tivesse escondido o segredo
por desvendar. Mas não o podia revelar a não ser saltitando de um ramo para o
outro, cagando de alto sobre um carro estacionado. Talvez, se o melro
conseguisse falar, me dissesse depois qualquer coisa parecida com: “Ainda não
percebeste? Queres que te faça um desenho?”
Artur
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