quinta-feira, 10 de abril de 2014
1914
No dia 9 de Abril de 1918 o Corpo Expedicionário Português foi completamente destroçado pela esmagadora superioridade numérica, tecnológica e de preparação das forças alemãs com que se defrontou. Estima-se em 7500 o número de mortos, feridos e desaparecidos portugueses. Para a História ficou a lembrança da bravura, da coragem e da honra com que esses homens se bateram, para além de toda a esperança e razoabilidade. Os seus feitos foram reconhecidos e louvados pelo inimigo. Aconteceu num tempo em que essas coisas ainda podiam acontecer e em que reconhecer o valor moral, a integridade e a coragem do inimigo era uma forma de o engrandecer, engrandecendo-se.
"O deflagar da guerra mudou o mundo, o que existia antes de 1914 e o que se seguiu não se assemelhavam em absoluto, os factos desenrolaram-se apenas nominalmente na mesma superfície da Terra". Quem o diz é Max Brod, uma personalidade a que infelizmente não é dado o devido relevo; é sempre lembrado como o fiel amigo de Kafka e seu testamentário desobediente. É pena: Max Brod merece ser evocado como uma das vozes mais lúcidas e coerentes da cultura europeia, exibindo uma impressionante capacidade de perceber o espírito do tempo, ou o "zeitgeist" como dizem os pensadores alemães.
Brod encarna maximamente o papel do escritor encerrado na tripla armadilha de Praga, um universo que, como refere Claudio Magris "Era um gueto religioso sem Deus, um gueto nacional de escritores alemães isolados do germanismo,um gueto social de burgueses não aburguesados, uma vida de artistas cuja verdadeira fé na arte era pelo menos posta em dúvida".
A frase de Brod que cito no início é uma constatação cujo tom só em parte revela uma intensa nostalgia, comum a toda uma geração de escritores que, tendo vivido no furioso clima cultural e artístico da Europa Central no período histórico a que a irrupção da I Guerra Mundial põe um fim brutal, reflectem nos seus escritos o sentimento de uma perda irreparável, que nenhuma promessa de futuro pode compensar. Aliás, que amanhãs cantantes podem surgir do desmoronar de um mundo que parecia seguro, medianamente livre, orgulhoso das suas conquistas civilizacionais, parecem pensar essas testemunhas privilegiadas de um tempo que desaparece e de um novo que nasce, seguramente mais incerto que o precedente ?
Ernst Jünger, por sua vez, embora se compraza nesse interminável Verão que procede o desencadear das tempestades de aço, percebe que esse tempo contém já em si os germes da destruição e da decadência. Ouçamos o que diz em "A Guerra Como Experiência Interior":
"No casulo bem fechado de uma mesma cultura, vivíamos todos juntos, mais próximos do que homens alguma vez o foram, dispersos pelos nossos trabalhos e prazeres, circulando por praças banhadas de claridade e por poços subterrâneos, nos cafés onde nos rodeavam espelhos resplandecentes, as ruas, grinaldas carregadas de luz, os bares cheios de licores de colorido variável, as mesas de conferência e o último grito, a cada hora sua novidade, a cada dia seu problema resolvido, a cada semana sua sensação, no fundo uma enorme e irresistível insatisfação."
O que Jünger antevê é o culminar dessa "insatisfação" numa tremenda explosão homicida, em que os instintos primitivos, animais, voltam ao de cima. A vontade de os povos se baterem e massacrarem mutuamente está já a germinar e, no dia em que a faísca acender o rastilho, o ultra-civilizado homem dos cafés e das conferências literárias vienenses voltará a ser o homem coberto de peles que vem das estepes e das florestas, pronto para matar e ser morto numa orgia de sangue que definitivamente o satisfaça. O que Jünger não consegue prever é aquilo que depois descreve em páginas sobre páginas de um realismo alucinado:
"Noite após noite negras colunas serpenteavam em direcção às trincheiras, arrastando um enxame de obsessões que volteavam em bandos vorazes. Às vezes engolfavam-se nas aldeias, chagas negras e escnacaradas em que os pós dos soldados da frente abriram, nas ruínas, estreitas veredas de pilhagem (...) A putrefação. Alguns desfaziam-se, sem cruz nem campa, à chuva, ao sol e ao vento. As moscas zumbiam em nuvem cerrada à volta da sua solidão, cercava-o uma auréola de densa exalação. É inconfundível o cheiro do homem em putrefacção, pesado, adocicado, ignobilmente tenaz como uma papa que se agarra. Depois das grandes batalhas, pesava sobre a terra como uma capa de chumbo, a tal ponto que os mais esfomeados perdiam o apetite (...) Os cabelos caíam dos crânios aos molhos, como no Outono a folhagem amarelecida das árvores. Alguns desfaziam-se em geleia de peixe esverdeada que luzia na noite, por baixo dos uniformes esfarrapados . Quando se andava em cima deles o pé deixava pegadas fosforecentes. Outros secavam tornando-se múmias calcificadas que se descamavam pedaco a pedaço (...)"
Ao contrário dos seus ilustres colegas checos, austríacos e alemães, Charles Péguy, um dos maiores escritores europeus do século XX, não teria lamentado o desaparecimento de uma ordem das coisas que nunca viu como idílica e que sempre execrou. Rezam as crónicas que foi abatido no dia 5 de Setembro de 1914, não muito longe de Villeroy. O tenente Péguy tinha-se despedido uns dias antes dos poucos amigos que lhe restavam, entre os quais Léon Blum com quem mantinha querelas que duravam há anos. Encaminhou-se para o campo de batalha sem ilusões, em paz com a sua consciência, na qual se travava há décadas uma guerra sem fim contra o desespero. A revista berlinense "Die Aktion" dedicou, seis semanas mais tarde, uma homenagem ao grande escritor desaparecido em combate, com um retrato assinado por Egon Schiele. Nesses tempos longínquos essas coisas ainda eram possíveis. A bala alemã não matou nos alemães aquilo que em Péguy transcendia as fronteiras da nacionalidade e apelava a todas as consciências europeias : a integridade do pensamento e do comportamento, a repugnância em relação aos compromissos, ao discurso político oleoso, à manipulação dos financeiros e grupos económicos, a facilidade das relações públicas e privadas, em relação, enfim, ao Mundo. As ressonâncias de 1914 e 2014 são assustadoras: a cólera do escritor, martelando com ambos os punhos o "estado a que aquilo tinha chegado" poderia ser a nossa cólera hoje, se tivéssemos a coragem de ser coléricos, se não fosse tão branda a nossa indignação quotidiana em relação à fraude, à mentira, à encenação e à traição moral.
Relembremos a tese de Walter Benjamin, mais actual do que nunca: o percurso da História é uma corrida em direção ao futuro, que deixa atrás de si amontoados de ruínas e vai enterrando as vítimas caídas, durante o avanço do "progresso". O selvagem anarco-capitalismo contemporâneo, que os nossos governantes e os seus corifeus proclamam ser a via da nossa salvação, é um escarro na face de Deus: convencidos que a História acabou, e que são eles que lhe põem fim, mercê da gigantesca inteligência com que foram dotados, nega qualquer futuro e qualquer possibilidade de mudança substancial ; instaura um repugnante império do Mal, num horizonte de presente imediato, indefinidamente prolongado e "irrevogável", repetível ad nauseam, tal como as encenações mediáticas das quais não se distingue. Nós, os outros, embora sejamos aqui e ali dominados pela melancolia, continuamos à espera do Messias e teimosamente insistimos em ler nas coisas aquilo que virá. Os desmentidos quotidianos não apagam a crença. Como dizem as Escrituras, aquilo que tarda, virá.
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