sexta-feira, 7 de março de 2014
THE END - HISTÓRIAS DE UMA CANÇÃO
Emblemática da obra dos Doors, a canção “The End” (67) acaba por ser o cruzamento de muitos caminhos quer no seu significado quer na repercussão dos seus efeitos ao longo de uma existência de quase meio século. Comecemos pelo princípio. “The End” foi sendo tocada ao longo de meses nas actuações no “Los Angeles Whisky a Go Go” antes de se converter numa faixa de 12 minutos gravada no estúdio, sem mistura e concluída à segunda tentativa. Numa primeira fase Jim Morrison atribui o tema a uma despedida, ao fim de um relacionamento com uma namorada. Mas acrescenta que também se pode tratar de uma despedida do estatuto da infância. A canção no entanto acaba por ganhar vida própria e, através da complexidade imagética e universal atingidas, adquire a capacidade de se reinventar de cada vez que é ouvida. E essa será a história de “The End”, quem sabe o segredo da sua imortalidade. Tomemos dois exemplos que ainda foram a tempo de ser esclarecidos pelo autor.
Num primeiro caso, a meio da recitação dos seu poema Morrison estabelece a sequência das suas célebres frases “Father I want to kill you, Mother I wanto to f… you”, suscitando vagas sucessivas de indignação ou histeria pelas imagens escolhidas. Quase toda a gente entendeu estas frases como recados de Morrison aos seus pais. Mais tarde Ray Manzareck (teclas) viria a esclarecer que tudo não passava de uma experiência. Jim Morrison trabalhava na altura na Florida numa produção onde era representada a tragédia Édipo Rei de Sófocles. Enquanto poeta e experimentador, Morrison limitou-se a recuperar um mito milenar da civilização, embrulhado nos trabalhos de investigação de Freud, e dar-lhe umas roupagens de Rock. Tal como o poeta, que se vestia de estrela de Rock para explanar e dar a conhecer a sua poesia.
Num segundo caso, ao dar uma entrevista, perguntaram a Morrison o que quereria dizer a frase: “My only friend, the end…” O poeta responde assim:
“ Ás vezes a dor é demasiado grande para ser analisada ou sequer tolerada.
Isso não a torna má ou necessariamente perigosa. Mas as pessoas tendem a
temer mais a morte do que a dor e é estranho que assim seja. A vida dói
muito mais. No momento da morte a dor termina. Julgo que a morte é um
amigo, sim”
Mas a história de “The End” continua, desta vez saltando para o cinema. O tema é utilizado pela primeira vez em 1968 sobre uma cena de sexo de um filme realizado por Martin Scorsese enquanto estudante. Trata-se de WHO’S THAT KNOCKING AT MY DOOR. Mas o grande salto vai ser dado quando o argumentista de APOCALYPSE NOW, John Millius decide incluir “The End” na banda sonora do filme em duas ocasiões chave (na sequência de abertura e no momento da morte do coronel Kurtz). Se até aqui (anos 80) a canção já se tinha convertido num mito ela adquire uma universalidade impensável na altura em que foi composta. A este propósito aconselho um curto vídeo incluído na versão Blu-ray do filme que saiu em 2010, onde Coppola e Millius travam um breve diálogo de cerca de dois minutos. Nele ficamos a saber que o realizador foi colega de Morrison e de Manzareck na escola de Cinema de Los Angeles, descrevendo o primeiro como um homem extremamente recatado e culto, admirador de Nietzsche. Na mesma conversa ficamos também a saber que quando Millius explicou aos sobreviventes da banda que escreveu o argumento a ouvir o som deles até à exaustão e que escolheu “The End” por lhe parecer uma canção de guerra, a reacção foi de horror. Não era nada disso que eles tinham em mente quando o fizeram. Mas a escolha de Millius apenas reforça toda uma atmosfera de ruptura e irrealismo, sinais típicos de um cenário de guerra onde as personalidades se vão diluindo ao sabor dos acontecimentos à medida que constroem uma intimidade alucinada com a morte. A versão utilizada em APOCALYPSE NOW é ligeiramente diferente da original de 67. Nela é dada muito mais destaque à pista da voz no crescendo final, tornando muito mais nítido o discurso de Morrison.
“The End” volta a aparecer no cinema no filme THE DOORS (91) de Oliver Stone, na sequência em que a banda resolve tomar ácidos no deserto. E sobre este momento fílmico a canção volta a contar outras histórias, desta vez sobre a própria banda. Numa primeira fase Ray Manzareck recusou o convite para consultor do filme. Mais tarde afirmaria que a história da banda havia sido retratada de uma forma horrível. Numa entrevista no programa de Jay Leno, a ex-repórter da Rolling Stone nos anos 60 e também esposa de Paul Mc Cartney, Linda, deu a sua opinião sobre o filme. Antiga conhecida dos Doors, Linda lamentou o facto de o seu amigo Jim não estar vivo para ver o filme porque iria fartar-se de rir. Jay pergunta-lhe porquê. Porque, em primeiro lugar, os Doors nunca fizeram um único concerto que tivesse multidões tão grandes a assistir como se vê no filme.
De facto os Doors, tal como o seu tema “The End”, nunca se alinharam por um modelo linear de significação ou leitura. Numa década totalmente ocupada por uma mensagem de paz, amor, harmonia e paraíso ao virar da esquina, as suas canções falam de raiva, horror, sofrimento, dão ênfase a aspectos negros da humanidade desenterrando mitos antigos, recuperam tradições culturais de ruptura, destacam a travessia do inferno como o único caminho possível para alcançar a redenção. Estão numa banda de rock mas fazem passar mensagens, poemas, narrativas que extravasam as fronteiras de uma encenação. Experimentam muito para além da moda do seu tempo. Daí ainda hoje terem aceitação e admiração em gerações que nasceram muito depois da morte de Jim Morrison. Neste contexto, a trajectória de “The End” ao longo do tempo, acaba por se tornar o paradigma da própria banda. Um fim sempre longe de terminar.
Artur
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