quinta-feira, 2 de janeiro de 2014
ELEGIA
No início deste novo ano queria escrever um texto de homenagem a uma geração ferida : a minha. Uma geração emergente das cinzas de um imperativo categórico ideológico. Uma geração sobrevivente que, enquanto escrevo estas linhas, se encontra a enviar currículos, pagando (mal) as suas hipotecas, tentando deixar de fumar, fingindo uma certa indignação, comprando móveis económicos no IKEA, sonhando com um Ipad, recolhendo os frutos que outros semearam, muito por sua própria culpa, ou seja, por demissão e omissão.
A dançar a música do último Verão.
Queria falar dos caminhos perversos que nos conduziram aqui.
Todas as gerações – a minha geração “talking about my generation”, para quem se lembra – se compõem de um punhado de homens e mulheres corajosos e de um enorme rasto adiposo, que aspira a morrer sem fazer demasiado ruído, deixando aos filhos um pequeno apartamento, um diploma de curso superior, um crucifixo – ou um retrato do Che Guevara, tanto faz – e uma colecção de fotografias descoloridas. Passam por uma existência plena de abismos, sem entenderem os intensos fogachos de beleza, paixão, fúria, ânsia e perfeição que nos rodeiam. Às vezes, intuem os seus simulacros transmitidos pelo tubo catódico da sala familiar. Não é de estranhar que os novos iluminados do salva-te-a-ti-mesmo (o laparoto-mor, o lixo irrevogável, toda a escumalha do pote, os banqueiros e merceeiros de serviço e todos os outros cujo nome nem merece ser mencionado) estejam a festejar o “estado a que isto chegou”. Na feira das vaidades, a pior de todas é a de pretender salvar a própria vida, sair vivo deste mundo, convencer as forças incompreensíveis do universo para que nos saia o Euromilhões. E, como diziam os Antigos : que os Deuses repartam a sorte.
O meu sonho é que os poucos que restamos sejamos capazes de acender todas as luzes, ou que formemos um pequeno clã de resistência, todos aqueles que vivemos na montanha russa a meio caminho entre o abismo e a beleza. Eu era daqueles que não sabia dançar. Nas festas, ficava pelas esquinas a fumar cigarros e a procurar cúmplices para o projecto de demolição do mundo. Passados muitos anos, tive o prazer de os encontrar, mais sumidos, menos audazes, mais silenciosos. Estavam nas cinematecas, nos gabinetes universitários, emparedados atrás de perigosos livros expostos em alfarrabistas, enviando artigos para revistas de circulação restrita, escrevendo e publicando livros que ninguém lê, empenhando-se até às orelhas para promoverem seminários de Lacan e comprarem os livros de Zizek, tudo fazendo como se a vida se escoasse.
Um momento.
A vida fugiu mesmo, desapareceu por entre todas as actividades insanas, inúteis, estéreis e vazias: discos, livros, séries de televisão, vias de escape. Isto não é uma saída, sobretudo tendo em conta a maneira como tudo acabou por se estilhaçar em milhares de pedaços. Discos, filmes, livros, textos para atirar pela janela nas noites gélidas de poucas alternativas, noites em que os televisores da vizinhança vomitavam as hóstias consagradas dos sermões incompreensíveis, parcos em orações subordinadas e abundantes em erros de sintaxe, noites de olhos abertos.
A semiótica esteve quase a dizê-lo, mas ficou à porta. Barthes, Eco, Zumalde, quase o disseram. Não se trata unicamente do prazer do texto. Trata-se da sobrevivência no texto. Trata-se de acender as luzes. Este texto, que pretendia ser uma homenagem à minha geração, acaba por ser uma homenagem aos textos que acenderam as luzes.
Quanto a tudo o resto, não vou enganar-vos.
Quanto a tudo o resto, a vida prosseguirá cheia das coisas que provocam danos e que são realmente os focos do mal-estar contemporâneo. Escrevo estas linhas e ouço o anjo de Walter Benjamin perder as plumas, enquanto tertulianos cocainómanos defendem através da televisão aberrações atrás de aberrações ante milhões de pupilas esfomeadas, os pátios das escolas dão impulso a engenharias de maldade pura, os últimos inocentes recebem as primeiras hóstias, os cartões de crédito ronronam nas lojas decoradas com faustosos dourados na Av. Da Liberdade, se aprovam planos estalinistas de reeducação das massas, se concede essa subvenção ao cunhado do presidente da câmara para uns terrenozitos baldios, uma parelha de apátridas de quinze anos, amantes do techno – ela está grávida mas ainda não sabe – compram cachorros quentes numa sala multiplex de um centro comercial, enquanto chega outro convite para aderir ao Facebook, um perito em pedagogia opina que talvez seja melhor transformar o natal na Semana da Paz e Tolerância, para não ferir sensibilidades, ferve o chá em centenas de cozinhas, domesticam-se cães, uma cadeia de televisão passa um programa sobre um tipo que sequestra a filha da sua ex-mulher e suicida-se em seguida, David Guetta prepara um novo single, Shakira situa-se como uma alternativa credível como candidata ao prémio Nobel da Paz, um adolescente sobe o volume do seu telemóvel numa estação da linha Alameda-Rossio e todo o comboio se enche de uma voz simiesca que intenta vocalizar algo como “morena, cadela, morena, tu sabes”, golo do Benfica num inenarrável encontro histórico, chega outro convite para o Farmville e ainda um outro para o Instagram, “juro-te que é a primeira vez que me acontece”, elegantes e discretas páginas web oferecem aventuras para senhoras casadas que perderam a faísca da paixão, a gala dos Globos de Ouro e os Prémios Sophia para o Cinema Português, o Tribunal Constitucional, milhões de modems descarregando em apaixonados zumbidos todo o tipo de sofisticada pornografia em streaming “gostas de conduzir ?”, sorteios da lotaria, chuvas douradas, debandadas de pássaros, o primeiro banco responsável, o primeiro banco da nova banca, chega um convite para mudar de casa, dor de cabeça., tranquimazin, ibuprofeno, gelocatil, Saldeva, Tuenti, Melendi, Steve Jobs, dor de cabeça, eficácia, trabalho por objectivos, empreendedorismo, sentido de estado, o par de adolescentes amantes do techno fornicam dentro de um automóvel que passou pelo tuning, enquanto os seus corpos imprecisos, e já malditos, se iluminam com o néon azul, com o néon vermelho, com o néon verde.
A vida escoou-se assim.
Cai a noite e acendem-se as luzes do Carnaval do mal-estar.
Arnaldo Mesquita
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