Chego cansado do trabalho e
encho-me com o amanhecer como se fosse o mais deslumbrante milagre da vida. A
luz vai-se erguendo tímida e incerta, devolvendo à cidade as formas perdidas no
escuro da noite. A estrada assume o seu destino, as casas erguem-se orgulhosas
no alinhamento das ruas, as pessoas caminham em todas as direcções, o carro
assume vontade própria e pára à porta da tua casa. Como um autómato encontro no
bolso a chave que nunca tive e subo as escadas que nunca subi para te
encontrar, ou voltar a ver na cama onde nunca dormi. Acordas do sonho com um
sorriso de boas vindas e sentas-te lentamente como se todas as manhãs
estivesses à minha espera. A tua boca que eu não beijo de forma sôfrega e
desesperada diz o nome que nunca soube dizer e que por acaso é o meu. Os corpos
falam entre si recordando as formas que nunca conheceram como velhos amigos. E
recordam manhãs de despedida entre promessas e lágrimas de eternidade, noites
desenfreadas de paixão inexistente, carícias nunca executadas, obstáculos e
mais obstáculos que nos mantiveram longe, muito longe de nós. As horas dos
encontros em que nunca nos encontrámos desfilam num corrupio de memórias,
enquanto o chá e as torradas passam de mão em mão. Deixei de te ver quando caiu
o nevoeiro antes da minha última batalha contra os invasores, deixei de
acreditar em ti depois de uma intriga que me convenceu que tudo estava perdido
para o nosso lado, toda a nossa história é um desfile de desencontros e mal
entendidos, excelentes objectos de romances e filmes, canções e quadros. Tal
como aquela lenda medieval de uma mulher que caminhava de noite com um lobo e
de um cavaleiro que galopava de dia com um falcão fêmea no braço. A maldição
que os possuía só os deixava ser homem e mulher duas vezes. Ao entardecer e ao
nascer do dia. Por isso erravam juntos, humano e animal. Assim, lentamente
crescem as penas no teu corpo logo a seguir a terminares o chá. Os teus braços
abrem-se cada vez maiores até serem asas. Já nem sobra tempo para um adeus. Escolhes
a janela da cozinha e voas lá para fora. Agarrado a um resto de torrada fica um
homem a uivar antes de adormecer, fica a memória de um lobo que de noite se
arrastou por entre as sombras da floresta. Na manhã que nunca te encontrei as
memórias desaparecem enquanto o Sol nasce, os encontros assumem o seu destino
na linha do tempo, os corpos regressam às suas formas escondidas pela noite, o
carro ganha vontade própria e o destino é sempre um desencontro mal combinado,
uma piada de mau gosto de que ninguém se lembra antes de rir.
Artur
2 comentários:
Gosto tanto, tanto, tanto...
Obrigado Sofia.
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