sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A PARÁBOLA DO “JEITINHO”

Há muitos anos atrás, em pleno Processo Revolucionário Em Curso (PREC), havia um passado que tinha acabado e um novo futuro começado a construir. E nesse intervalo entre dois mundos tudo era possível, até a alegria e a solidariedade no rosto e nos actos da maioria das pessoas. Uma gigantesca festa rápida, muito rápida, própria dos tempos vazios. Ora acontece que nesse tempo, qualquer atentado, por mínimo que fosse, ao bem-estar e funcionamento da comunidade, poderia contar com uma reacção colectiva ruidosa e feroz. E até mesmo aquelas almas que permaneceram anónimas durante décadas, de repente voltaram à vida, muitas vezes mais enérgicas e mais actuantes que o comum dos revolucionários.
Um tio de um amigo meu, que nada era, nem de um mundo nem do outro, continuava a levar a vida no “desportivismo” típico de um português, deixando assim a mensagem de que há coisas que nem as mais ferozes revoluções (que nem sequer era o nosso caso) conseguem mudar. Um dia teve que se dirigir a uma repartição de Finanças, ali perto da Rua da Escola Politécnica. Contando que não se iria demorar e como os lugares de estacionamento não abundassem por ali, decidiu estacionar o carro ocupando metade do passeio e outra metade na rua. Acabando por se demorar bastante mais do que pensava, quando voltou para o carro (um Mercedes a gasóleo) encontrou o trânsito todo parado do lado da faixa em que havia estacionado. À volta já se tinha juntado uma pequena multidão que vociferava e exigia tudo e mais alguma coisa do infractor, mesmo a sua cabeça. Mantendo a calma habitual, o tio do meu amigo aproximou-se e abordou um dos manifestantes. “Então o que é que se passa?” O outro, satisfeito por ser útil a alguém, explicou que um fascista (o Mercedes não engana) tinha estacionado mal o carro, impedindo o carro eléctrico de circular. O que eles deviam era pegar-lhe fogo antes da chegada do reboque. O “fascista” pensou e retorquiu: “ Se pegarmos fogo ao carro, além do risco de incendiar tudo à volta, então é que nunca mais passa ninguém nesta rua até amanhã. Porque é que não nos pomos todos à roda do carro, e abanamos até o conseguir empurrar todo para dentro do passeio? Assim já se consegue desobstruir o caminho e o trânsito volta a passar à vontade.” Os manifestantes olharam uns para os outros e viram que aquela até poderia ser uma boa solução. Rodearam o carro e prepararam-se para o começar a abanar. Sob as instruções desse tio do meu amigo esperaram para começar. Ele olhou em volta. “Então vamos lá começar a abanar o carro quando eu disser.” Olhou em volta e, antes de dar início à manobra, ainda teve tempo para um último conselho. “Mas com jeitinho..!”
Com jeitinho a Liberdade e a Democracia vão-se apagando aos poucos e a sociedade orquestrada pela lei da selva volta a ser restabelecida. Com o medo dos radicais islâmicos, ou de uma qualquer outra ameaça, os direitos fundamentais vão-se eliminando como empecilhos retirados do caminho, em nome da segurança. O vazio de uma sociedade e de uma civilização começa a ser construído na ambiguidade das decisões dos seus dirigentes. Quando uma sociedade não sabe que rumo tomar ou que futuro construir, inventa inimigos de forma permanente, mantendo assim, através do ódio, um espaço comum para despejar a frustração.
Com jeitinho vão-se eliminando todas as soluções de equilíbrio e de compromisso que constituem o contrato social, despojando os mais fracos das mais elementares dimensões da dignidade humana. O colectivo financia os prejuízos das aventuras financeiras da desregulamentação neo-liberal, nacionalizam-se os bancos em dificuldades mas os lucros desses mesmos bancos são privados. O cidadão comum deixa de ter acesso à justiça, à educação e a uma série de serviços que o estado deveria garantir em troca dos impostos, porque não tem dinheiro. Os salários são reduzidos mesmo que isso seja inconstitucional. A corrupção instala-se em todas as áreas vitais para a Democracia. E, todo este estado de coisas vai em que direcção? Na direcção do vazio, da eliminação pura e simples de uma grande parte da Humanidade. Na direcção do alargamento do fosso entre ricos e pobres. Na direcção da exploração do trabalho em benefício da ganância e do enriquecimento especulativo, sem escrúpulos. Mas desta vez com “muito jeitinho”. Já não há ditadores de uniforme e bigode foleiro em cartazes em todas as ruas, nem grandes paradas militares, nem os gritos da família do vizinho que desapareceu integralmente a coberto da noite. Não. Desta vez, tudo é feito com muito “jeitinho”. Devagar, sem pressa. Através da propaganda dos órgãos de comunicação, sob o comando da falsa ideia da “opinião pública” dirige-se a atenção na direcção que se pretende. Com escândalos de faca e alguidar, com futebol e telenovelas alienantes, com o mesmo pacote de notícias servido em todos os canais, com doenças terríveis que afinal não são assim tão terríveis. Quando numas eleições presidenciais, quase todos os candidatos têm idades a rondar os 70 anos, algo de anormal se passa. Algo que nos avisa para mais um tempo que está prestes a terminar e outro que se levanta no horizonte. Se será melhor ou pior, é difícil de dizer. O que sabemos é que a Democracia e a Liberdade são lutas diárias, longas conversas sempre longe de terminar. À espreita estão sempre os mesmos, que, com muito “jeitinho” nos vão roubando, pilhando, gozando, eliminado em lume brando.

Artur