quarta-feira, 3 de novembro de 2010

AQUI OU NO LUGAR DE SEMPRE

Deixo a cidade para trás, depois de um dia de trabalho. Mais um. Tudo aconteceu como era suposto acontecer, sem sobressaltos, igual aos outros dias. Por isso não me lembro de nada. Estamos lá mas não estamos. As coisas correm sozinhas pelas suas vias próprias de comunicação, qual estruturas industriais perfeitas e gigantescas. A nós cabe-nos o papel de guarda-nocturno, turnos de vigia, verificações, registos. Só actuar em caso de anormalidade, de falha na estrutura. E depois, a vida, as bebedeiras e o sexo, as questões em debate no sofá do Psicólogo, as manhãs nostálgicas em frente ao mar, as refeições em silêncio com os rostos de todos os dias, a morte dos outros, a nossa. Até o carro percorre o caminho para casa sozinho sem precisar de grande intervenção minha. De repente saímos e de repente um portão. A casa onde moro e um espaço enorme sem nome nem conteúdo entre a partida e a chegada.
Um puto de bibe num recreio da escola aproxima-se das grades e observa o exterior com receio e curiosidade. Um adolescente irreverente debate-se dentro de uma onda demorada como uma peça de roupa na centrifugação da máquina de lavar. Julga que vai morrer. A seguir à aflição, desiste. Embrulha-se com o inevitável e espera. A onda devolve-o com jeitos de sabedoria. “ Vai-te lá embora e toma mais cuidado da próxima vez”.
Em vez do caminho directo a casa apetece-me beber qualquer coisa. Tento convencer o carro a alterar o rumo. Um Gin Tónico (com maiúsculas porque estou cheio de sede) numa esplanada em frente ao mar. Uma rapariga simpática que flutua com uma bandeja na mão. Um peito muito agradável e apelativo. Um quadro de Van Gogh no Reyksmuseum em Amsterdão depois de uma pausa num Coffee Shop. E ao fundo as palavras de um poema, as imagens de um filme a brincar entre a espuma das ondas e os reflexos do Sol. Como um gato que tive e que me desafiava para a brincadeira.
A sensação cada vez mais nítida de um campo de férias no fim das aulas. Um planeta para visitar, um espaço existencial temporário que de lazer pouco tem. Um caminho mais pedregoso do que confortavelmente pavimentado. Um tempo que terminará antes de voltar a casa. Um estágio, um tirocínio, um saco de pedras para carregar a que se chamam “mágoas”, uma possibilidade de crescimento, uma valente porra. E um espaço mínimo de resistência que não envelhece nem fica mais fraco. Uma vela mínima que arde mas que não apaga. Uma luz que me lembra quem sou, mesmo quando já quase me esqueci de mim. E que me manda pensar, estar atento, não desligar. Daí o espanto infantil vestido com um bibe a observar o mundo lá fora, daí a onda a que não se resiste, daí o eterno desalinhamento em relação a tudo o que se apresenta como inevitável, completo, absoluto.
O segundo Gin mais lento a escorregar e o Sol de Outono a anunciar o Natal. Não me arrependo de nunca estar dentro do contexto, nem de não ter mais nada a não ser dúvidas, nem de me ter limitado a viver enquanto a vida corria, nem de ter amado. A grande vantagem da Lucidez é conseguir chegar ao fim e não ter nada a ensinar nem exemplos para anunciar. Apenas ajudar a pensar, aliviar o peso das pedras, sorrir como se nada fosse. Olhar para um miúdo e ajudá-lo a encontrar segurança. Mostrar-lhe que “não custa nada”. Mesmo quando dói bastante a ponto de parecer que não vamos conseguir aguentar.
A Vida é uma casa alugada, não a comprámos. Viemos estagiar neste campo a que não pertencemos. Por isso tantas coisas nos fazem tanta confusão, por isso não embarcamos em tantos comboios. Porque a pequena vela que insiste em se manter acesa é como o testemunho de uma memória que fala sem a conseguirmos ouvir. A memória do “Ser” que somos, o autocarro, o caminho de regresso a casa.
E entre as ondas, o Princípio e o Fim, um gato atrevido e as palavras de um poema por escrever brincam às escondidas, um portão de uma casa onde sempre morei, uma frase suspensa de significado, uma empregada simpática em decote sorridente, a obrigação de ser eterno, o amor ao próximo, a consciência instintiva, um quadro do Van Gogh, a Vida eterna que corre solta pelo corredor vestida com um bibe azul e branco da cor do mar…

Artur

2 comentários:

Clarice disse...

...e mais um Gin para celebrar a vida que temos ainda e ler também o que tu escreves.
Boa malha:)

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado Clarice. Espero continuar a agradar a tua preferência de leitura. Bom Fim de Semana
Artur