quinta-feira, 27 de agosto de 2009

UM TEMPO

E no entanto houve um tempo, houve qualquer coisa lá atrás perdida no passar do caminho que nos fez viver, sentir… Houve qualquer coisa lá atrás que se fixou em nós como um passeio ao fim da tarde à beira mar com dedos entrelaçados, gestos hesitantes inacabados de um pudor reclamado pelo pisar de terra desconhecida. E no entanto houve mundo e vida nessa antevisão de uma partilha que dividia a tranquilidade entre nós. Lá atrás no pó da estrada ficou esse tempo que nos obrigou a continuar o caminho, esse gesto no ombro, essa palmada que explicava que não estava sozinho, esse momento amigo que fazia passar o frio. Um tempo em que o grito foi mais longe que a vontade e a palavra mais forte que a ideia. Um tempo perdido em caminhos sem saída, dias esbanjados na inútil tarefa de sobreviver, de baixar a cabeça no carreiro, de balir no tempo da carneirada. Na travessia desta realidade que não é real, em que a dignidade se vende e mente, e viola por três míseras moedas, onde não somos de nenhum lugar se nos pusermos a pensar, a tentar clarear os dias. E no entanto houve um tempo. O tempo de sermos nós apesar do resto, o tempo de sentirmos a vida sem máscaras nem promessas falsas de bem-estar enlatado. Houve e há um tempo. Há sempre o Tempo de sermos Nós…
Artur

sábado, 22 de agosto de 2009

O GOSTO QUE NOS LEIAM

Ninguém escreve para o etéreo, para a gaveta ou para o vazio. Por mais que vos queiram convencer, não acreditem. Só há necessidade de escrever associada à necessidade de ser lido. O resto é masturbação estéril ou exibição gratuita de egos pouco seguros de si próprios. O Neanderthal e o Homo Sapiens que decidiram pintar as grutas de Lascaux , de Altamira ou as rochas de Foz Côa sabiam lá no íntimo, que mais dia menos dia alguém havia de parar a olhar para aquelas representações, completando dessa forma o ciclo da comunicação.
Ninguém anda aqui a escrever para si. Todos escrevemos uns para os outros na esperança que alguém nos leia e, em última análise, pense como nós em relação a determinado tema.
Vem isto a propósito de duas pessoas. Um amigo de infância ( o Pedro), isto é, alguém que conheço há mais de 40 anos, e uma amiga da blogosfera ( Clarice) que não deixa escapar nada do que aqui se publica. O Pedro dizia-me pelo telefone em campodoriquês: “escreves bem comó c….” A Clarice, mesmo que eu esteja “ausente” deste espaço por algum tempo, coisa que se tem verificado nos últimos meses, não deixa escapar nada. Obrigado Pedro e Clarice. È para vocês que eu escrevo.
Artur

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

(...)

...
As coisas há muito já foram vividas:
Há no ar espaços extintos
A forma gravada em vazio
Das vozes e dos gestos que outrora aqui estavam.
E as minhas mãos não podem prender nada.

Sophia de Mello Breyner Andersen

domingo, 2 de agosto de 2009

FUTEBOL, CINEMA, POLÍTICA


GOAL DREAMS

Maya Sanbar, Jeffrey Saunders

Palestina, 2006

Pela mesma razão de que é muito difícil encontrar uma região no planeta em que não se viva a emoção do futebol, também é extremamente difícil fazer um documentário sobre o que quer que seja na Palestina, sem tropeçar em política. Mesmo que esse documentário seja sobre futebol. Essa foi a rápida conclusão a que chegaram Maya Sanbar e Jeffrey Saunders quando decidiram acompanhar a selecção nacional palestiniana desde o seu campo de treinos em Ismailia no Egipto, passando por Grã-Bretanha, Chile, Líbano, Gaza e Estados Unidos conversando com várias pessoas directa ou indirectamente ligadas aos trabalhos da equipa. A política acaba por interferir em todas e cada uma das suas existências.
A Associação Palestiniana de Futebol contratou o treinador austríaco Alfred Riedl para liderar os trabalhos inerentes à qualificação da selecção nacional da Palestina com vista à qualificação do mundial de 2006. Logo à partida o treinador vê-se a braços com uma série de contratempos que, da barreira linguística às lesões, passando pela impossibilidade quase permanente de ter todos os jogadores presentes num único treino, não lhe deixam espaço para uma tarefa fácil. O documentário acabará por se concentrar em quatro jogadores oriundos dos quatro cantos do mundo, mas nem por isso menos empenhados no seu trabalho. Os problemas ( de ordem física, emocional, cultural e geográfica) vão-se acumulando.
Fareed é um palestiniano nascido nos Estados Unidos e criado num subúrbio judeu de Nova Iorque. A sua atitude optimista para com a vida revela-nos um homem que partilha e respeita valores tanto árabes como ocidentais. Queixa-se de nunca conseguir treinar com a equipa completa e das traduções mal feitas.
Kethlun é filho de pai palestiniano, nascido no Chile. Joga no Club Deportivo Palestino, representante da comunidade árabe naquele país. Fala espanhol e inglês mas não esconde a sua perplexidade perante determinados aspectos da cultura árabe, principalmente os mais cruéis. Fala espanhol e inglês, sendo o tradutor de serviço, embora do idioma local nada perceba.
Saleh é o guarda-redes que vem da Faixa de Gaza e que sonha vir a jogar num clube fora da Palestina. O encerramento fronteiriço decretado por Israel dificulta-lhe a circulação. Sempre que se desloca para o exterior para trabalhar fica sujeito a longos períodos de exílio. Os jogadores residentes na Faixa de Gaza estão proibidos por Israel de deixar o território desde que as fronteiras foram fechadas. E de nada valeu uma autorização especial da FIFA.
Por fim, El-Hassan, refugiado palestiniano a viver no Líbano. Desesperado, acaba por renunciar aos e estatuto de refugiado. Conta que no Líbano os refugiados estão proibidos de trabalhar em certas zonas, bem como de requerer a cidadania libanesa. Durante o documentário luta contra uma lesão, acalentando a esperança de ainda conseguir vir a jogar.
GOAL DREAMS é mais do que um registo sobre uma equipa nacional ou sobre histórias cruzadas de jogadores. É fundamentalmente um trabalho acerca de como se vive, se destrói e reconstrói uma identidade. Como se pega nos cacos de uma nação explodida pelo mundo e se volta a colar as peças dispersas. E esse esforço de reconstrução, essa realidade cultural colectiva, passa também pela construção de uma equipa de futebol.

Artur Guilherme Carvalho