domingo, 6 de setembro de 2009

CRÓNICA DE UM DOMINGO CINZENTO

A crónica de um Domingo cinzento ocorre em qualquer dos tempos que quisermos escolher, desde que sejam tempos que já foram. Ou ainda são, o que vai dar ao mesmo.
Naquela tarde de Verão a caminho do fim, Lisboa dormitava entre campanários solitários, jardins ferrugentos e ruas adormecidas pelo embalo de uma luz tímida. Nos largos e nas praças acumulavam-se multidões ruidosas que celebravam o fim de um tempo e o nascer de qualquer coisa. Qualquer coisa nova que se começava a construir sobre os despojos de ódios antigos, injustiças acumuladas, fome prolongada, guerras esbanjadas. Uma revolução pavoneava-se na esperança da maioria como uma mulher batida em frente a um jovem virgem abarrotado de certezas e auto-estima.
Nas sociedades recreativas corriam bailes de bairro entre velhos atentos, músicos bêbados e povo anónimo em geral. Outro tempo. O tempo de Jonas na tarde em que jogou uma das suas sete vidas. O quarto da pensão humilde onde veio parar com a mãe era demasiado pequeno para arrumar as suas esperanças no fim de uma atribulada viagem dos confins de um Império que o deixou de ser. Os sonhos estavam guardados ali perto, no cais, perdidos numa floresta de caixotes de madeira com nomes de família pintados no exterior. Conheceu Lídia numa dessas sociedades recreativas e, porque era demasiado jovem, trocou os sinais da sua paixão pelos indicadores de uma trituradora de homens. Confirmou a sua ingenuidade da pior forma com a vista desagradável de outro homem no seu lugar. Nessa tarde cedeu e, de uma vez por todas, despachou-se a experimentar aquilo que há muito lhe ofereciam. Fumou heroína por um canudo prateado, mergulhando nas profundezas do inconsciente a mágoa recente de uma vida que se interrompia muito antes de ser vida. Num jardim, debaixo de uma árvore, ao lado de uma estátua de um poeta do século anterior, um vulto de outro tempo. A experiência correu mal. Vomitou até quase à alma e desapareceu assustado para casa jurando a si mesmo que havia formas muito mais rápidas e menos dolorosas de assinar o fim do contrato com a vida. Correu para fora de si à procura do seu tempo.
Noutro banco do jardim um velho dormitava sentado com um chapéu surrado inclinado sobre os olhos. Preso de muitos anos, gozava agora a liberdade de viver sozinho numa cidade que já não era a sua. Tinha entrado à socapa num hotel fino. Encontrou uma jaqueta de um empregado distraído e vestiu-a. Dirigiu-se ao bar com o ar mais solene e mais profissional que conseguiu arranjar, sem levantar suspeitas. Olhou à volta. “Madamas” e ricaços assustados ultimavam fugas de um país subitamente enfurecido. Revolucionários barbudos espojavam-se nos sofás caros de couro rangente. Agarrou na primeira garrafa de whisky de 12 anos que encontrou e veio-se embora. Quando uma manifestação de jovens universitários desfilou à sua frente já tinha emborcado metade. Turvos e desfocados, a gritar palavras de ordem, exibiam punhos no ar e bandeiras com foices e martelos. O Paraíso estava ali ao virar da esquina. Só que para ele já era tarde. Sentou-se no jardim a emborcar a outra metade. O coração reclamou, os pulmões soluçaram um protesto. Só os pombos perceberam que se despedia. Saído de um tempo que não era o seu.
Alfredo mantinha o camuflado pendurado na parte de trás da porta do quarto. Tinha ido “alombar” como os outros para um lugar desconhecido, atrás de um inimigo que reclamava a terra onde nasceu. Voltou com a mochila carregada de certezas vazias e fantasmas dos mortos que deixou para trás. Agora o inimigo era amigo, a guerra terminara sem que ninguém tivesse perdido. Era para esquecer e continuar. Mas ele não conseguia continuar sem se lembrar. Um papalvo qualquer chamou-lhe assassino de criancinhas. Alfredo deu-lhe um nó no tronco e empacotou-o com a cabeça numa mesa até a partir em duas metades. Respirou fundo e saiu do tasco com a atenção por cima do ombro a registar a desaprovação dos outros. O filme mudara. A personagem era outra. Estava noutro tempo, noutra dimensão. Mas não no seu tempo.
Júlio estudava porque não conhecia outra maneira de justificar a sua existência e porque a alternativa que os pais lhe davam às notas negativas era morrer numa selva africana como o irmão mais velho. Na escola havia mais barulho que aulas, mais manifestações que testes, mais agitação do que rotina. Não percebia bem a razão de toda aquela euforia. Chegou-lhe vagamente a ideia que não repetiria o destino do seu irmão. A guerra tinha acabado. Ou melhor, tinha-se estilhaçado nas ruas em pequenas guerras entre partidos, esquerda e direita, frente e trás, cima e baixo, todos contra todos a querer inventar a sua ditadura particular. Naquele domingo agarrou numa lata de tinta que havia sobrado e resolveu decorar as vetustas paredes de uma catedral secular com todos os palavrões que conhecia. Por lá ficaram durante dias as suas palavras, na pedra velha de muitos Verões. Num tempo que não lhe pertencia.
Naquele tempo havia um momento em que se escreveu a História. Em que um mundo terminou e outro nasceu no seu lugar. E nesse tempo houve um Domingo cinzento de Verão a caminho do fim, em que alguns homens perderam a noção do tempo porque não lhe pertenciam. Eram seres sem tempo...
Artur

6 comentários:

Vitor disse...

Artur, vai escrevendo e, contando histórias…estou sempre por perto!

Abraço

Clarice disse...

Li tudo!;)

elbett disse...

Com este, até fiquei angustiada, com um nózinho no estomago...
Bjos

elbett disse...

e aquela trovoada fantástica...??Depois do Domingo cinzento de verão, era mesmo aquela trovoada!!! Até os cães fugiram, para dentro de casa!!
Fica bem e não pares!
!

Artur Guilherme Carvalho disse...

Vitos e Clarice, é sempre um prazer recebê-los neste blog. Um abraço para vocês.
Else, as melhoras e rápido recobro. Não tenho o teu tlmvl. Manda p. e-mail. Beijos

Artur Guilherme Carvalho disse...

Como reparararam, a última msg. saíu-me um bocado em açoreano. Queria dizer "Vitor" em vez de "Vitos" e "Elsa", em vez de "Else". Aqui ficam as minhas desculpas e os meus agradecimentos.