quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

SERMÃO AOS MATRAQUILHOS (Desabafos)


Agora que o meu pai morreu já pouco sentido faz uma casa de madeira pintada com umas tiras amarelas à entrada das Azenhas do mar. As caminhadas falésia abaixo, canas de pesca, cesto de verga com as sandes, balde pequeno com a terra que envolvia minhocas bailarinas, balde grande vazio para trazer os peixes, panamá na cabeça, às vezes o tio Armando aos palavrões sem conseguir acertar o isco no ponto de interrogação metálico do anzol, tudo ficou em suspenso num tempo como plantas dentro de um bolha de ar perdida num lugar qualquer da minha memória, de alguma maneira com vida à espera de morrer comigo. Os fins de semana cinzentos até Domingo à hora da saída salpicados de chuva e nuvens de água em pó que o mar assobiava nas rochas. Vou vender esta merda. O grande animador desta festa de madeira para as férias e para os fins de semana já não está cá e eu... eu... breve ideia dele nesta terra, interrogação nómada de vida inteira, pensamento efémero de companhia de circo sem poiso fixo, sem sentido, sem mulher, gás de cloaca anónima que nem no seu ruído se faz ouvir porque eu e a minha mãe somos como um turista japonês em Roma a tentar saber a direcção do Vaticano com outro turista espanhol a pensar que se trata de um italiano. Ela não quer saber. Com três netos e uma artrose que faz o favor de a incomodar sempre que o tempo muda e um companheiro a quem visita todos os meses instalado num jardim de pedra, tem mais que fazer do que preocupar-se com uma casa de madeira com umas faixas amarelas pintadas no exterior de que só o meu pai gostava. Não tenho nada contra isso... nem a favor. Uma vida partilhada por dois seres acaba por se transformar no mesmo ser (talvez), uma existência de décadas construída por duas vidas devia dar direito a alimentar os sonhos do outro mesmo depois da morte. Talvez. Não sei dizer ao certo, nunca vivi com nenhuma mulher, nunca tive filhos, nunca partilhei sonhos com ninguém. Aprendi a amar entidades colectivas auxiliado pela expressão das armas. Jurei a defesa e a protecção do território, da Constituição e do povo português mesmo com o sacrifício da própria vida. Como é que um guerreiro dos tempos modernos pode sequer tentar perceber o que vai na cabeça da mãe dele..? Ao fim de quarenta anos de vida, só sei que ela se preocupa comigo e passa meses sem me ver. Criou três filhos da melhor maneira que sabia, cumprindo o seu papel de forma empenhada, responsável e transparente. Acho que, embora detestando o caminho da estrada de Sintra e a casa de madeira que ficava à entrada das Azenhas do mar, sempre soube esconder o seu desprezo aristocrático por um buraco onde poderiam viver os pescadores da zona só para não contaminar a alegria e o entusiasmo do companheiro, o seu sacrifício, o seu esforço para que houvesse aquele espaço de férias, um lugar de descontracção fora da cidade. Um funcionário público honesto e cumpridor que poupava todos os tostões por breves momentos de paz no tempo em que ter férias era um luxo, no tempo em que éramos todos pobres e este país fazia concorrência desleal à Albânia em todas as listas do subdesenvolvimento europeu. Todos pobres, sim. Mesmo os cagalhões dos meus avós, com apelidos sonantes de famílias antigas e pedra de armas a encimar o arco de granito da entrada da quinta onde viviam no Norte. Também eles eram pobres apesar das criadas, apesar dos jantares com os maiorais do Estado Novo, apesar do desprezo social com que faziam questão de receber o meu pai. Comiam o que se plantava na quinta e as vindimas decidiam em cada ano se podiam pagar a prestação ao Crédito Agrícola ou passar o Inverno seguinte com o tecto a pingar sobre as suas cabeças. Não sei se venda esta merda, pai. Tal como muitas foram as vezes na minha vida que quanto mais certezas tinha, mais depressa as deixava de ter. Um homem com o tronco desfeito, com meio corpo à vista na beira de uma estrada da Bósnia é como um camião que atropela todas as convicções. Um homem desesperado a tentar proteger o filho pequeno dos tiros de um franco-atirador, que lhe grita desesperadamente para não disparar numa rua de Serajevo, põe em causa séculos de civismo e bom senso europeu, deita por terra todas as esperanças de um futuro civilizado onde todos tenham direito ao seu espaço de respeito e dignidade. Morreram os dois, pai. Pai e filho. La Pietá versão masculina, pátria, num único gemido surdo. Miguel Angelo revisitado numa rua de uma cidade da Europa onde a Humanidade continua a esculpir com detalhe e perfeição as curvas e os desníveis da sua própria barbaridade. Desta vez sem nenhuma entidade exterior a quem atribuir o papel de culpado. Foi essa uma das melhores revelações deste século para muitas pessoas. O Céu e o Inferno nada têm a ver com o que nos acontece. O homem é o grande predador de si próprio, o único arquitecto dos cenários mais infernais que nos assolam por esse planeta fora. Deus e o diabo estão fora disto como espectadores espantados. E eu atravessava aquilo tudo sendo-me impossível ficar indiferente. Havia um pequeno lança-granadas na parte de trás do jipe. Apontei na direcção de onde vinham os tiros e rebentei com um vértice do prédio. Gostava de ter ouvido os gemidos daquele filho da puta. Gostava de o ter ouvido a guinchar como um porco só para aliviar o meu desespero por justiça. Voltei com um louvor, uma promoção a Major e o peso do mundo nas costas. Voltei a tempo de ainda te encontrar vivo no hospital, a tempo de te conseguir ainda contar uma anedota e dividir uma gargalhada na véspera da tua morte. E não tive tempo de te contar isto tudo, de voltar contigo a ver um desafio de futebol . Não tive tempo de ouvir a tua opinião.
Amanhã vou pôr a casa a vender num anúncio do jornal. Hoje, no entanto, comprei uma garrafa de whisky para a emborcar sentado na varanda a ver o mar, a tentar-me lembrar que nesta casa houve um tempo para se ser feliz. Para me lembrar que este espaço silencioso já foi preenchido por gritos e cantorias de crianças alegres, do tilintar de copos cheios de limonada ao fim de uma tarde de Verão, dos latidos de um cão simpático que caía redondo após voltas e voltas sobre si próprio na vã tentativa de morder a cauda. Se nesse tempo fui feliz, não sei dizer. A felicidade é uma palavra muito forte para este planeta. Queima se nos aproximarmos demasiado dela. Mas eu vivi aqui bons tempos contigo, a mãe e os meus irmãos. Por isso aqui me emborracho enquanto o Sol se vai espraiando no horizonte, à tua saúde e à das memórias que vão morrer comigo.

2 comentários:

Clarice disse...

"A felicidade é uma palavra muito forte para este planeta. Queima se nos aproximarmos demasiado dela."

Até nas memórias... queima só de a lembrar...

Artur Guilherme Carvalho disse...

Mais um estilhaço de romance, mais uma fala de uma das muitas vozes que vão dando corpo ao SERMÃO AOS MATRAQUILHOS...