quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
ENTRE DIÁLOGOS, LINGUAGENS E ADAPTAÇÕES
Adaptar uma obra de arte para outro tipo de linguagem que não aquele para o qual foi inicialmente programada traz consigo uma série de riscos e outro tanto de especulação e crítica que nos pode deixar horas a falar sem chegar a grandes, ou pelo menos, absolutas, conclusões. Adaptar situações históricas, reconstituir o passado, recontar factos, traz consigo também uma série de implicações que devem ser cuidadosamente estudadas e debatidas, pela simples razão de que no caso das adaptações nem tudo deve ser permitido Ou, por outras palavras, a liberdade criativa nas adaptações carece de um nexo mínimo de verdade e honestidade intelectual sem os quais a obra de arte perderá definitivamente o seu estatuto para se transformar noutra coisa qualquer.
A primeira característica de uma “adaptação”de qualquer coisa (outra narrativa, uma biografia, um acontecimento histórico) é a da credibilidade. Credibilidade em dois sentidos: a) no do domínio de um padrão técnico de linguagem na execução; b) no domínio do conhecimento do objecto de adaptação.
As adaptações cinematográficas de livros acabam em regra por transformar o objecto filmado em algo diferente, fruto de uma série de condicionantes e restrições que compõem a mudança de um tipo de linguagem para outro. Mas essa diferença não pode nem deve servir de desculpa para transformar uma narrativa noutra coisa qualquer. Tem de respeitar uma certa unidade de pensamento e de sentido próprio, o espírito da obra. Caso contrário já não é uma adaptação mas sim outra narrativa, outro conteúdo. Dou a título de exemplo na cinematografia nacional três versões do romance “Amor de Perdição” de Camilo de Castelo Branco. Em todas (versão muda de Georges Pallu (1921): 1ª versão sonora de António Lopes Ribeiro (1943) e mais recentemente Manoel de Oliveira (1978) ), apesar das características que as distinguem, o romance, a unidade estrutural da narrativa é respeitada. Distingue-as por exemplo o facto de serem rodadas em épocas diferentes, factor determinante que influencia desde a abordagem técnica até à direcção de actores, passando pelo modo de arrumar os vários episódios.
Esta é outra característica importante de uma adaptação: a época em que é executada influencia directamente o processo, seja por razões técnicas seja por razões ideológicas. E neste caso, muitas vezes é a narrativa original que sai a ganhar, como foi o caso em análise.
EQUADOR
No caso da super produção da TVI do romance “Equador” de Miguel de Sousa Tavares, o extraordinário esforço de reconstituição de uma época não consegue disfarçar uma série de falhas, voluntárias ou não, que, quanto a mim, se afastam do espírito do romance para edificar outra coisa diferente. Logo em primeiro lugar vem o facto do acrescento de personagens e ambientes que não se encontram no original. Não adiantando nem atrasando nada ao original, servem apenas para encher o ambiente da época. Por outro lado, talvez para justificar o investimento das paisagens da Índia, a extensa e demorada atenção dada ao casal de ingleses que se vão encontrar em S.Tomé com Bernardo e precipitar o desenlace da trama não faz muito sentido. A sua referência introdutória contava-se em 1 terço do tempo em vez de se mastigar e estender até à náusea os elefantes, os palácios e os figurantes indianos. A situação do casal falar entre si em português é também de um péssimo mau gosto, só ultrapassado pelo sotaque forçado de David como se tivesse as mandíbulas ocupadas com rolos de algodão. A narrativa televisiva escorrega da grande produção para a telenovela chineleira com uma facilidade arrepiante. Se acrescentarmos a inclusão de cenas e de entrada de personagens que nada adiantam ou acrescentam, deixando pontas soltas por acabar, associado à ênfase excessiva, e até mesmo imbecilizada das libidos de todos, o trabalho apresentado pela TVI nada acrescenta ou engrandece uma das mais bem conseguidas narrativas de reconstituição históricas dos últimos anos da Literatura Portuguesa.
SALAZAR E AS VALQUÍRIAS
No capítulo das reconstituições históricas gostaria de analisar dois exemplares da ordem do dia que devem ser referidos. Estou a falar de OPERAÇÃO VALQUÍRIA e de A VIDA PRIVADA DE SALAZAR. Sendo o primeiro uma adaptação cinematográfica com um volume de meios quase inesgotável, o tratamento dado a um dos episódios mais marcantes da vida interna do Reich já quase no fim da Segunda Guerra Mundial peca por centrar num único elemento (o Coronel Von Stauffenberg interpretado por Tom Cruise) uma conspiração elaborada por um grupo importante de altas patentes do exército alemão empenhadas na execução de Adolf Hitler. Tratando-se de um movimento composto por vários oficiais, correspondente a uma boa parte do povo alemão, a figura de Tom Cruise não convence, arrastando o filme para os terrenos da banalidade hollywoodyana do heroizinho engomado e bonitinho que nem de perto nem de longe consegue vender a imagem de uma veterano de guerra, um guerreiro de vida inteira, um patriota, etc. A título de comparação gostaria de referir o filme OS ÚLTIMOS DIAS DE HITLER de Oliver Hirschbiegel bem como a suprema criação de Bruno Ganz no papel do ditador. O facto histórico, embora muito bem enquadrado na reconstituição dos cenários, deixa muito a desejar no tratamento e explicação das ideias, dos motivos e do enquadramento político. Aliás esta tem sido a sina do cinema americano. Uma qualidade excelente na reconstituição da sua História e um desastre quase constante na dos outros.
E por fim, que dizer de A VIDA PRIVADA DE SALAZAR de Jorge Queiroga sem caír na banalidade das afirmações gratuitas? Que a criação é livre, tal como a adaptação ou invenção de determinados factos? Que o austero ditador que manteve o país debaixo da sua autoridade durante décadas afinal era tão humano como os outros? Que o respeitável e abnegado beirão se portava na intimidade como um verdadeiro garanhão?
A liberdade permite-nos dizer e fazer quase tudo o que nos apetece…até inventar o que não foi verdade. Mas que interesse poderá ter uma longa narrativa erótica sobre a vida íntima de um dirigente político sem contextualização histórica nenhuma? Que interesse terá um trabalho especulativo e simplificador de uma figura demasiado decisiva e relevante na história de um país se a câmara for colocada debaixo dos lençóis e aí for deixada o tempo todo?
A adaptação ou a reconstituição do facto histórico, não sendo um trabalho académico acaba por carecer de credibilidade para se poder tornar uma obra de arte. E se entendermos a arte enquanto objecto de comunicação e conhecimento o mínimo que podemos fazer quando adaptamos uma realidade histórica é ter rigor no conteúdo. Por alguma razão não se vêm filmes da Antiguidade em que os figurantes exibam relógio de pulso. E se vemos não se trata definitivamente de nenhuma referência de qualidade.
A “facilidade” ou a “subjectividade” simplificadora com se pretendem defender certas obras (de cinema ou de televisão) com objectivos pouco esclarecidos ou justificações absurdas (razões de bilheteira, massificação de conhecimento) não disfarçam a mediocridade e a incompetência em que consistem nos seus resultados. A História ou a narrativa literária adulterada, mal interpretada ou tendenciosamente exibida será propaganda, lixo audiovisual, e, em última análise…mentira. Mas não será nunca Arte…
ARTUR
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5 comentários:
Em grande! Não vi qualquer imagem sobre o que aqui escreves. Mas agora já sei o que fazer ;-)
Um abraço.
Ando com vontade de ter um livro publicado, mas não sei como fazê-lo... Temos de falar um dia.
Outro abraço.
Artur, penso que nunca consegui ver um episódio inteiro de qualquer das séries a que te referes…e (in) conscientemente tal atitude tem muito a ver com a análise critica que fazes, e dos pontos de vista apresentados…mas neste, ou em outro país qualquer o objectivo principal é vender o “produto”, mesmo que a verdade dos factos fique para segundo ou, mesmo em plano algum.
Abraço.
Grande texto, Artur, grande texto.
Carlos, temos que falar temos. entretanto clica escritacriativa. 1 abraço.
Vitor, é o tiunfo da mercearia sobre a civilização. É o que temos, o que é que se há-de fazer. GRitar enquanto deixarem. 1 abraço
António, obrigado. Já leste algum dos livros que eu te dei ? Abraço
Já li o Atrás do Pôr-do-Sol. Os comentários ficam para um próximo jantar...
Abraço
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