quarta-feira, 9 de julho de 2008

OLHOS DE CAÇADOR


OLHOS DE CAÇADOR
António Brito
Sextante Editora
Lisboa, Nov. 2007

“Colado ao chão, como um intruso, o vento trazia-me aos ouvidos inquietos, o ritmo dolente dos tambores misteriosos: a voz de África. Os homens, alheios à morte que se acercava, cantavam e dançavam ao ritmo do batuque, rodeando fogueiras, agitando velhas Mausers como lanças emplumadas, contorcendo os corpos suados, embebidos em poeira. As mulheres, que palmilhavam quilómetros pelas veredas estreitas da floresta, transportando sobre as cabeças molhos de granadas de morteiro para a s bases distantes, numa logística de formiga quando a noite caía, esqueciam as armadilhas em que tropeçavam, montadas por nós, e batiam palmas. Pareciam competir com o arfar dos tambores de pele de elefante ou o som cavo dos troncos ocos. Uns e outros rivalizavam com os sons mais alegres dos xilofones de bambu. Era estranho, muito estranho, mas eu amava de noite esses homens e mulheres que odiava e metralhava de dia…”
In Olhos de Caçador

Os veteranos de guerra, de quase todas as guerras, são seres extremamente incómodos, se fizerem a si próprios o favor de sobreviver. Completamente alheios ao processo decisório, acabam por ser os protagonistas de um cenário terrível cujas memórias nunca mais os abandonarão até ao fim dos seus dias. Se morrerem lá, ao serviço da Pátria, tornam-se heróis, nomes relembrados em dia de festa. Se regressam, estragam o retrato da nova ordem diplomática, pedem subsídios e reformas, têm doenças crónicas nomeadamente do foro psiquiátrico, em suma, atrapalham os dias do novo poder político que preferia celebrá-los enquanto glórias do passado em vez de problemas do presente. Portugal, talvez pela sua natureza semita de comércio de vão de escada, tem muita dificuldade em aceitar que houve pessoas da sua gente que deu o último sacrifício pelo seu país. Mas houve, e muitos deles continuam vivos para testemunhar que assim aconteceu.
Neste livro escrito por um veterano pára-quedista, vamos acompanhar o percurso de Zé Fraga, um contrabandista e passador de emigrantes da Beira Baixa que, após a sua detenção pala GNR é alistado e mobilizado compulsivamente para África. Colocado no Norte de Moçambique numa companhia de caçadores, para além das péssimas condições com as quais se tem de desenvencilhar todos os dias, Fraga é também vítima da prepotência do seu capitão (Galo Doido), que para além de violento e brutal na sua conduta para com os subordinados, passa os dias dentro do acampamento. A perseguição a Fraga, um rebelde incorrigível, intensifica-se quando percebemos que um GNR que este tinha deixado coxo para a vida era nem mais nem menos que o próprio irmão de “Galo Doido”.
O livro, para além de uma série de situações habituais de campanha, tem a particularidade de introduzir o leitor no teatro de operações profundo sem grande espaço para tiradas filosóficas que não fossem as que se prendem com a sobrevivência. Os personagens com nos vamos cruzando são extractos de pequenas histórias de vida, como a do jovem Capelão ou do Alferes Perdigoto. Umas que regressam a casa e outras que terminam no continente africano. É pois no âmbito do registo que vamos acompanhando a vida de Fraga entre combates e restrições da pior espécie, prepotências, doenças, calor e chuvas intensas, etc, etc. Não sendo um tipo inédito de romance, não deixa de ser extremamente aliciante de acompanhar tendo em conta que ainda muito falta escrever e filmar sobre uma guerra que durou treze anos e se estendeu por três frentes distintas. Um período terrível da nossa memória colectiva que consistiu numa guerra com todas as letras. Não foi uma brincadeira e esteve longe de ter sido fácil. A prová-lo estão as cerca de 10 mil baixas em combate e as centenas de veteranos que ainda hoje vivem entre nós, muitos na nossa própria família. Porque é preciso ter memória também é preciso ter respeito. Se desconhecermos o nosso passado, ou o decidirmos ignorar, estamos a hipotecar o futuro, perdendo a identidade. E um povo sem identidade é um povo que não existe. E eu quero continuar a ser português…

ARTUR

2 comentários:

Anónimo disse...

gostei imenso do seu livro foi uma surpresa.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Obrigado amigo anónimo, embora não tenha percebido bem se se refere a um trabalho meu ou ao post aqui publicado sobre Olhos de Caçador. Da próxima vez gosta de saber o seu nome. Obrigado
ARTUR