sábado, 30 de janeiro de 2021

ENTRE NEVOEIRO E GOTAS DE CHUVA

 


A entrar pelo trigésimo dia do primeiro mês de dois mil e vinte e um. Também já não ouço notícias em nenhuma estação e acabei por dar preferência à minha lista musical ou ao silêncio. É coisa rara ouvir o silêncio tão pormenorizadamente como nesta ilha. É tão raro e estive tantos anos a ouvir tantas vozes sobre os reactores dos aviões que isto me sabe a cerejas e pêssegos acabados de colher num dia de sol de escachar. Qualquer janela por onde espreite só vejo números a serem discutidos e fronteiras a serem impostas. Não estamos em guerra senão uns com os outros, a batalhar opiniões sobre assuntos que não entendemos. Há sempre alguém com gráficos, com discursos de personalidades mundialmente reconhecidas, com mézinhas, tisanas e rezas, velas, laços pretos e, claro, o olho grande, do grande irmão, a adivinhar que eu devo precisar dum treinador para o cão, dum impermeável à prova de ciclone, duma motoserra ultra leve, ou de emplastros para as juntas que se empenam em dias de noventa e nove por cento de humidade. A minha realidade nestes últimos anos tem sido sobre aquilo que posso fazer para melhorá-la. Fazer isso é a forma menos egoísta de resolver grande parte dos problemas da humanidade, na ótica desta utilizadora a um toque de router de distância.
Além do silêncio, há as estrelas que a ausência das mil luzes das cidades brilhantes despe sem nenhum pudor e se revelam bem longe da luz azul que absorve os espíritos desatentos. Há também o mau tempo, o barco que encosta a custo e que reabastece as prateleiras de víveres que poderiam ser de origem local mas que não.
A pouca distância tenho o melhor que as pessoas têm, e a noção de que estou no paraíso.
Aqui, o vírus da desconfiança e da revolta não se apoderou das horas que se cardam na lã dos dias. Aqui, sou eu e a independência que escolhi, a incapacidade que me escolheu,apesar do catálogo das dependências ser mais apelativo às congregações que ditam e desditam. Sempre fui pouco obediente, mas utilizo os três dedos de testa que alicerçaram a postura de meio século e dois anos na forma como me dou e me aceito.
Isto não é uma guerra e nós não somos soldados.
Somos manietados mas não mais do que na altura em que nos apetece ir de férias até ao destino paradisíaco que a agência de viagens mais poderosa publicitou.
Há que guardar o olhar espantado sobre o presente que se nos apresenta e usar a nossa capacidade de desconstruir os moldes impostos sem abalar a segurança dos nossos.
E mais, temos que usar a fé que os nossos antepassados tinham nos deuses, trazê-la até nós, e venerar o que temos de melhor.
 
Elsa Bettencourt 
 
(quadro: paisagem marítima de Gaugin)

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