quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A JARDINAR MAIS DO QUE A ESCREVINHAR

 

Décimo nono dia do primeiro mês de dois mil e vinte um.
Há pouco mais de um ano sonhava com regressos e abraços. Contava os minutos para voltar a estar ao teu lado. Era um tempo em que colava a cara ao vidro que antecipava a chegada, que esmiuçava os pequenos cristais de gelo colados nele como ao interior da própria anunciação. As partidas eram um local de lágrimas, as chegadas de alegria. Eis-me aqui, suspensa no espaço e no tempo, com um passaporte desnecessário, com chuva quase ininterrupta, com uma máscara no pulso em vez do adorno costumeiro de contas e berloques. Eis-me sem contar os minutos, a vivê-los compassadamente com a languidez dos dias amenos no peito, com sempre algo por fazer, com mais ainda por concretizar. Todos os dias deito uma semente à terra, todas as horas elas eclodem como pequenas saudades a brotar em muitas, verdes e esperançosas. Um dia serão um embondeiro já sem memória do início que lhes provocou a eclosão. O carteiro vem cada vez menos vezes, mas as cartas são cada vez maiores. Eis-me aqui à espera sem nunca desesperar.
Hoje a vizinha de 1926 estava assustada. Falava daquilo como quando um dia avistou um zepelim. Disse-me que aquilo vinha pelo ar, que lhe ia levando o filho, e que tinha passado a noite a chorar. Que lhe tinham dito que até se metia nos aviões e pelas frinchas da porta.
- abrigue-se, menina, abrigue-se! Aquilo vai até ao fim do mundo!
Só lhe disse para não se preocupar demasiado, que não era como um bando de pássaros com mira no milho das galinhas do vizinho. Ela riu-se e seguiu amparada pela canadiana até casa.
Ei-lo, vitima do mundo e do medo, da abstenção dos medrosos. Caiu ao chão agarrado ao peito e eles ficaram a pasmar, mudos, receosos, e embasbacados. Não o acudiram porque aquilo podia pegar-se, nem deixaram que o acudissem porque aquilo podia pegar-se. Tinham todos telemóvel para dizer aos familiares que estavam na fila do álcool gel, para mostrarem as micoses causadas pela máscara, mas ninguém se lembrou de pedir socorro, nem ninguém quis. Nem serviria de nada a explicação que dei à idosa vizinha. Aquilo já se pegou, a merda do medo, a incapacidade de sentir compaixão, a distribuição de culpas como outrora as estrelas em peitos alheios. Discutimos as vacinas e a falta delas, discutimos porque não nos protegemos, discutimos nada que interesse, porque é exatamente a lugar nenhum que elas nos levam. Passamos ao lado, assobiamos para o lado, bloqueamos o que não queremos ver nem ouvir, e acabamos na janela que nos faz pior, a deixar entrar em nossa casa as opiniões mais vis, as criaturas mais abjetas e as noticias mais tristes. Descobri que não sou pior pessoa se não me debulhar a chorar por quem está na uci, mas tenho a certeza de que nunca deixaria de ajudar quem caísse ao meu lado.
Já esperei para ser vista em pelo menos três macas de hospitais públicos. Já vesti batas de três hospitais e fiquei de rabo ao léu sem me sentir diminuída por isso. Fui sempre atendida e por duas vezes salvaram-me a vida. Sou do tempo em que os filhos se pariam em boxes da MAC. Do tempo em que a anestesia epidural começou a ser administrada em parturientes, e vulgarizada ao ponto de não se imaginar um parto sem ela. Quando a minha filha mais velha nasceu éramos dez na enfermaria, e aprendi mais com aquelas enfermeiras e companheiras de quarto do que em qualquer lado. Quando o meu filho do meio nasceu, já éramos oito na enfermaria e eu já nem quis epidural. Quando a minha filha mais nova nasceu, esperei a passear e a respirar entre o ctg e o bloco de partos, e eu é que avisei que estava na hora. A enfermeira parteira é que me assistiu e nunca vi o médico. Ela só me disse para não fazer muita força porque a menina tinha o cordão umbilical à volta do pescoço.
- para quê esta divagação à volta dos partos, Elsa?
As coisas que eu me pergunto... Porque há coisas que podemos controlar e outras que nos fogem das mãos. A respiração, muito bem inculcada pela dra Graça Mexia,
que nos ensinou o método Lamaze e que dizia que iríamos utilizar o que aprendemos para o resto da nossa vida.
Antes de dizer uma baboseira, respiro. Quando me dói uma junta, respiro. Quando os putos chateiam, respira profundamente e imagina-te numa ilha deserta cheia de sol. Quando o passageiro te dá um apalpão, respira, sorri, e vai fazer o café que ele te pediu. Espera pela turbulência e faz pontaria. Voilá! Já não tenho passageiros, mas mantenho a atitude. Se alguém precisar de ajuda, age. Não precisas de desligar a televisão porque não tens, se tens usa para ver coisas longe da atualidade. Não tenhas medo de parecer desinformada. Se o mundo acabar, vais dar por isso. Entretanto, faz pelos outros o que fazes para ti. Se não te amas, começa. Dá espaço a quem já não precisa de ti e não olhes para trás. Choram sempre quando estamos a olhar.
Daqui a um ano estarei a contar os segundos para estar ao teu lado. O nó na garganta, as borboletas na barriga, a boca seca e a cara colada ao vidro. O olhar a esmiuçar a paisagem que se aproxima. O gelo na janela, o calor e as águas cor de esmeralda. As palmeiras lá em baixo como negas malucas a dançar funk na areia, os pinheiros de camisola de neve a dedilhar Chopin com as falanges enregeladas.
Paisagens mescladas com o sonho das chegadas.
 
 
Elsa Bettencourt,

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