quinta-feira, 25 de junho de 2020

ROUGH BOY


ROUGH BOY



What in the world come over me?
I ain't got a chance of one in three
Ain't got no rap, ain't got no line
But if you'll give me just a minute I'll be feeli'n fine…

               ZZ TOP





Corria o ano de 1986 onde tudo era incerto, estávamos no início da nossa entrada no espaço da União Europeia e na fase final de mais uma crise económica. Aliás as crises económicas estiveram sempre aqui neste espaço onde somos sempre a um tempo culpados e vítimas de conjunturas que se desenvolvem sem nos perguntar nada. No início daquele Verão tinha conseguido um trabalho numa empresa ligada ao turismo a operar no Algarve. O Tomás candidatou-se um mês depois de mim e também conseguiu o trabalho. Durante seis meses, pelo menos. Depois logo se veria. A possibilidade de trabalho acompanharia a evolução sazonal do turismo na região. Com sorte voltaríamos a trabalhar na Primavera do ano seguinte. Até lá as nossas vidas entravam em pausa, arranjávamos actividades alternativas ou regressávamos a casa dos pais. Decidimos morar na mesma casa para dividir as despesas. Até aí conhecíamo-nos do mesmo grupo do bairro mas nunca fomos íntimos. Nesse Verão as coisas acabaram por mudar.
O nosso meio de transporte era uma Vespa, da célebre família das lambretas, que o Tomás trouxe de Lisboa. Original de 50 cm3, quitada a 90, o que na linguagem padrão significava que ao arrancar em primeira, quem não estivesse atento arriscava-se a ver a mota saír com a roda de frente no ar e a ficar pregado ao chão. Cenas de motas… Seja como fôr, o Tomás era doutorado no assunto. Desde ter corrido com o irmão no circuito de Vila Real,  fervoroso fiel da marca Kawasaky, enciclopédia do desporto motorizado, calendários dos grande prémios, pilotos, qualquer dúvida…ele esclarecia. Era como uma religião. Lembro-me de entrar no quarto dele de casa dos pais e sentir o odor típico de uma oficina. Isto porque, volta na volta era normal encontrar motas lá dentro desmontadas com as peças uma a uma penduradas na parede. Chegou a haver mesmo ensaios no corredor o que motivou o pai dele a desenvolver o hábito de, quando chegava a casa ao fim do dia percorrer o corredor de nariz no ar a tentar cheirar restos de óleo ou combustível queimado. Nesse Verão eu ainda andava de mota e fizémos juntos muitas horas em cima daquela Vespa preta a caminho da praia ou do trabalho. Houve longos passeios e longas conversas durante todo esse Verão, muita cerveja, petiscos do mar, salada montanheira. Cada um falava do que sabia e, se houvesse curiosidade, tentava ensinar ao outro. Eu falava de filmes, livros e realizadores enquanto e ele de motas, pilotos e gastronomia. Quando chegávamos à música havia empate. Ouvíamos os mesmos sons, tínhamos as mesmas preferências.
Numa tarde de Julho, quando ia a entrar em casa encontrei-o no sofá em frente à televisão. Discutimos programas para o resto do dia dado que estávamos ambos de folga. O Tomás falou-me na concentração de motards do Moto Clube de Faro, evento que apesar de ir na quinta edição era ainda um ser estranho vedado ao comum dos mortais. Hesitei. Cheirava-me a encontro de Hell Angels, gajos enormes com grandes barrigas, grandes barbas e cadastros bastante preenchidos. Ambiente hostil a quem fosse de fora. O Tomás tentou-me convencer relembrando outras concentrações onde já tinha estado presente em Inglaterra ou em Espanha. Aceitei com a condição de que assim que começasse a correr mal voltaríamos logo para casa.
Assim, eu o Tomás e a Vespa de 50 quitada a 90 rumámos ao aeroporto da cidade para nos juntarmos à concentração. Quando entrámos no terreiro fronteiriço à Ria Formosa e ao aeroporto encontrámos um cenário digno de Hollywood. Motas de todos os tamanhos e feitios, tipos caracterizados para figuração em filme de estrada, barbas, tatuagens e cicatrizes. O efeito de espanto foi mútuo na medida em que, ao ver entrar uma Vespa num mostruário onde alguns dos espécimes se assemelhavam a moradias com jardim, os motards suspenderam a actividade para melhor nos observar. Parámos a mota, descemos, fomos até à barraca das bebidas e pedimos uma cerveja. A vida continuou no recinto. Depois sentámo-nos numa mesa perto de um trio de amigos, dois holandeses e um escocês. Apresentámo-nos, começámos a falar e a conversa continuou. As cervejas não paravam de chegar à mesa…os charros também não. O Rock pairava no ar por cima da poeira e do cheiro a óleo e gasolina das motas. Fumava-se e bebia-se em acto contínuo. Não sei do que é que falámos na altura mas lembro-me de um instante em que tudo parou na minha cabeça. Foi quando olhei ao longe o Sol a pôr-se e uma música dos ZZ TOP apareceu por ali. Não sei se num rádio, não sei se numa banda que tocava no palco, não sei se apenas nas nossas cabeças. Calámo-nos todos por momentos e deixámos que as guitarras ocupassem o espaço. Os nossos rostos fecharam-se a olhar para dentro interrogando, contemplando, celebrando, num silêncio estridente. Quando a música acabou a algazarra aproximou-se de mansinho e tudo voltou ao que era. Nunca me senti minimamente ameaçado ou alvo de perturbação dos outros. Aliás sempre me senti bem vindo e confortável em ambientes de motards. Ali não foi excepção.
Os tempos eram "rough" (duros) e obrigavam-nos a ser "rough" como eles. No fim daquele Verão voltávamos para o desemprego e o futuro era uma incógnita negra para a maioria das pessoas da nossa geração. No fim de Setembro o Tomás voltou para Lisboa e eu fiquei a viver em Faro. No ano seguinte trocámos. Eu arranjei trabalho perto de casa e ele voltou para Faro. Anos mais tarde acabou por morrer num acidente de mota muito perto daquele lugar da concentração. Sem pensar duas vezes, dei o seu nome ao meu filho mais novo que nasceu no mesmo ano. E até hoje lembro-me dele e dos nossos passeios como se tivesse sido ontem.
Cada amigo tem o seu lugar na nossa vida. Um lugar que nunca pode ser preenchido por outra pessoa. E nesse lugar cabem recordações como esta em que nos sentimos em casa numa concentração de motards nos idos do Verão de 86.

Artur



2 comentários:

J.Young disse...

Gosto muito de te ler. As palavras são tão simples e evidentes que se tornam complexas e nos fazem pensar.
Abraço.

Artur Guilherme Carvalho disse...

Muito obrigado Young. É para mim muito gratificante saber que escrevo para a satisfação e entretenimento de alguém. Grande abraço