sexta-feira, 26 de junho de 2020

MAL DE ARQUIVO

A ideia de que o objecto da história e, em particular, os objectos da história de arte, tenham origem num movimento rememorativo, ao mesmo tempo que preenche uma expectativa de redenção, dá conta de uma catástrofe que não se pode evitar, a saber, a transformação da vida em cinzas. Na verdade, a história trata com cinzas, restos funerários e não é possível pôr entre parêntesis a dominância destrutiva desse elemento catastrófico. Benjamin di-lo da melhor maneira: “O que passou, o já não existir, trabalha apaixonadamente no seio das coisas. A isso confia o historiador o seu interesse. Ele tira partido dessa força e conhece as coisas tal como são no instante em que já não são.”(Das Passagen-Werk, [D. 41]) 
Maria Filomena Molder,
Dia Alegre, Dia Pensante, Dias Fatais 


Este texto reconhece uma dívida e agradece a inspiração na obra Mal d’Archive de Jacques Derrida. A dívida, como é óbvio, inicia-se logo no título. Pese embora a homografia e a quase homofonia de “mal”, o pathos do vocábulo francês invoca o desejo, quase a obsessão apaixonada com o arquivo, descartando a relação que a palavra portuguesa mantém com categorias ético-morais; o mais aproximado a que podemos chegar na nossa língua é a expressão “mal de amor”. Queremos manter o significado da língua francesa e lá chegaremos, se tudo correr bem, ao paralelismo com a língua portuguesa.

Voltando ao texto de Derrida, convirá saber que o mesmo é a transcrição de uma conferência proferida pelo filósofo em Junho de 1994, em Londres, por ocasião de um colóquio internacional intitulado: Memória: a questão dos arquivos, organizado por René Major e Elizabeth Roudinesco, sob os auspícios da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise, do Museu Freud e do Instituto de Arte Courtauld. A conferência-ensaio procurava reelaborar o conceito de arquivo na actualidade numa única configuração que englobasse as dimensões política, técnica, ética e jurídica. O pendor problematizante do pensamento de Derrida conduz a questão para os terrenos de uma metafísica difusa, afirmando, mais ou menos nestes termos, que nunca conseguimos renunciar, mesmo que inconscientemente, a exercer poder sobre o documento, a sua posse, retenção ou interpretação. Acreditamos que esta linha de problematização dialoga com uma formulação que Michel Foucault desenvolve em A Arqueologia do Saber, obra na qual o filósofo francês analisa a questão do documento e a sua transformação em monumento, ou seja, “a história tende à arqueologia – a descrição intrínseca do documento”. Como se percebe, a fulgurante inteligência francesa, pela voz dos dois filósofos, desloca a problemática do arquivo; embora o nome “arquivo” ainda conserve a memória do arkhê grego, conserva-se ao abrigo dessa memória, esforçando-se por esquecê-la: a passagem dos arquivos da esfera privada para a esfera pública, a sua abertura a investigadores e não-investigadores – idealmente, a todos os cidadãos que os requeiram – retirou-lhes o carácter de secretismo e confidencialidade que conferia poder exclusivo a quem os detinha, ou seja, esvaziou de conteúdo uma outra concepção de arkhê que remete para o comando e o domínio sobre uma comunidade exercidos pelos arcontes (os primeiros guardiões) dos arquivos. Como se vê, a família semântica de arquivo tem uma dimensão física (a morada dos documentos), histórica (tudo o que é relativo, já que o absoluto não tem história), normativa (a faculdade de exercer poder concernente ao controlo e manipulação dos arquivos) e ontológica (o ser do arquivo remete para tudo aquilo que é primordial, originário, original, para os aristotélicos “primeiros princípios”). 
É aqui que nos despedimos de Jacques Derrida; a “vontade de poder” dá lugar à vontade de saber e ao desejo de verdade. Que verdade ? Uma conhecida lei da Física estabelece que não é possível conhecer simultaneamente a velocidade e posição de um determinado objecto (partícula) já que, para conhecer a sua posição é preciso “iluminá-lo” e quando isso acontece, ele muda de posição e de velocidade. Significa isto que a observação afecta sempre a “verdade do objecto”. Ao longo do ano de 2018 – Ano Europeu do Património Cultural e 70. Aniversário da Cinemateca Portuguesa –, e parte do ano de 2019, “gente da casa” e outra, que dela não sendo, dela não deixa de o ser, seleccionou, pensou e escreveu, debaixo da rubrica Textos & Imagens, sobre diversos objectos que representam os vários arquivos que constituem o arquivo do CDI (segundo a feliz formulação de Teresa Borges), afectando-os e revelando o desejo de memória e o desejo de verdade de que falávamos; o arquivo de arquivos move-se, tem dinâmicas e lógicas internas que se ocultam e desocultam à medida do trabalho que sobre ele e a partir dele se desenvolve. As novas perspectivas que todos esses contributos trouxeram a objectos que pareciam fixos e instalados em categorias comuns e que, mercê desse trabalho, mudaram de posição e de velocidade, permanecem os mesmos, sendo já outros. 
Como todos os arquivos, o do CDI requer uma domiciliação e um suporte estável, o que o liga de certo modo à inescapável determinação topográfica dos arquivos desde tempos imemoriais (a arkhê dos arquivos à guarda dos arcontes). Supõe também a dimensão comum a essa arkhê, a arqueologia. Exceptuando algumas instâncias determinadas pela necessidade de conservação da integridade dos documentos/monumentos, ou jurídico-legais, está totalmente aberto à comunidade, sinal de uma modernidade e de uma actualidade perenes, que dispensam o estabelecimento de uma autoridade hermenêutica legítima com acesso privilegiado a fontes recusadas a não-especialistas; o desejo de verdade é cosmopolita e democrático; o poder arcôntico que detinha em exclusividade as funções de unificação, identificação e classificação caminha a par e passo com o poder de consignar, isto é, de reunir os signos num sistema de sincronia ideal, no qual não existe distanciação absoluta, heterogeneidade ou segredo que o separe dessa consignação, ou da sua função institucional. Não cabe aqui discutir – embora fosse interessante fazê-lo – o impacto deste arquivo sobre a historiografia do cinema em Portugal e talvez também o impacto sobre a historiografia do arquivo e do arquivismo. É um trabalho que está por fazer e que, certamente, será feito um dia. De uma coisa estamos certos: este projecto de saber, de prática e de instituição, de comunidade e consignação é atravessado na totalidade do campo por uma questão política: a da res publica. 
A Cinemateca é assim uma imensa sala de projecção, não só dos filmes, mas de tudo aquilo que com eles se relaciona, recusando a falsa aproblematicidade dos objectos; eles são, no fim de contas, uma inesgotável “planície de verdade” cuja pensabilidade nunca se esgota; ocultam-se e desvelam-se como enigmas; criam novos valores, sendo a sala de projecção não só a possibilidade de experiência dos objectos, mas a condição dos próprios objectos da experiência. Precisamos urgentemente de voltar à presença e à familiaridade. 
Começámos agora a era do medo, sobretudo o medo de perdermos o controlo das circunstâncias e rotinas da nossa vida diária. Compreendemos que, talvez, já não sejamos só nós que já não conseguimos moldar as nossas vidas, conferir-lhes sentido, dar-lhes um rumo, mas que também quem nos governa tenha perdido o controlo, para forças que os transcendem e que se situam no domínio do inimaginável. Estamos, sem dúvida, garantidamente menos confiantes nos nossos objectivos e aspirações comuns. Como celebremente comentou o politólogo John Dunn, o passado está um pouco melhor iluminado que o futuro; vemo-lo com mais nitidez. Mais do que nunca, vamos precisar de instituições públicas sólidas, credíveis, poderosas no que toca à criação de confiança comunitária – confiança no projecto colectivo –, capazes de fornecerem serviços fiáveis fornecidos por um sector público devidamente financiado. Algumas dessas instituições já existem.
Arnaldo Mesquita

* Texto publicado originalmente na página da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, na secção "Sala de Projeção". A fotografia pertence ao filme "Toute la Mémoire du Monde" de Alain Resnais.

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