terça-feira, 3 de março de 2020

MAIS CRÓNICAS DO BAIRRO…











Um escritor é um tipo que faz do centro da sua vida a Literatura, que respira, digere, anseia, chora e ama literáriamente, que explora a linguagem enquanto ferramenta, que se dedica à nobre arte da escrita desde que se levanta até que se deita. Outra coisa, outro conceito completamente diferente é o de "contador de histórias". O contador de histórias é um tipo que só escreve quando tem tempo ou lhe apetece, que gosta de fazer mais actividades, que nunca tem tempo, que não consegue uma palavra de reconhecimento pelo seu trabalho nos meios especializados e, por fim, um tipo que gosta de misturar a realidade e a ficção como quem faz um bolo para o lanche. O objectivo é encantar, distraír, recordar, estimular emoções, despertar sentidos. Neste blog é possível encontrar estes dois conceitos entre o trabalho do João Matos e o meu. Eu sou um contador de histórias, um cozinheiro de ficções e realidades e, nas horas vagas, um cronista libertário.
Serve a presente introdução para voltar aos tempos de onde nunca saí, aos tempos em que não havia dinheiro mas havia tempo, gargalhadas, invenção permanente. Tempos em que tudo era chupado até ao tutano, gasto até à extinção até não haver mais nada para fazer ali e partir para a próxima experiência. Tal como em serões de "família" com os nossos filhos e sobrinhos, já não nos preocupamos em explicar realmente o que aconteceu. Já nos habituámos aquelas expressões tipo: "ou estes tipos eram completamente virados da marmita ou são uns grandes mentirosos". Nem uma coisa nem outra. Somos apenas aquele bando de adolescentes que de vez em quando gosta de voltar ao pátio do recreio e…recordar. Posto isto, passemos à crónica de hoje.
Tinha passado mais um ano e o Johny (todos os nomes são fictícios; quem se lembra identifica, quem não sabe segue a orientação) decidiu que não queria estudar mais. Antes de comunicar aos pais ofereceu-se voluntário para os comandos. Assim ganhava tempo de se desviar de uma bolachada ou de um sermão maior acerca dos níveis de desemprego e um questionário cerrado acerca do "que é que pensas que vais fazer a seguir? vais viver do ar?", etc, etc. Só que a jogada de antecipação correu relativamente bem até certo ponto. A incorporação nos comandos só iria ocorrer em Março e ainda se estava nos princípios de Janeiro. Seriam três meses à boa vida se o pai dele estivesse distraído. Só que não estava e para não sustentar madraços até à Primavera o Johny tinha que arranjar trabalho até lá. Ou arranjava ele ou o pai o punha nas obras. Tinha uma semana. E pronto, estava montada a tragédia. Não sei como nem porquê havia alguém que conhecia alguém que poderia saber de uma vaga não sei aonde…a rede do bairro começou a operar . Antes de terminado o prazo dado pelo pai do Johny abriu uma vaga numa escola de crianças deficientes, a escola Jean Monet que matriculava na sua maioria crianças com trissomia 21. O habitual condutor da carrinha tinha-se reformado e a escola estava com dificuldade em arranjar outro. Fintando o pai e as obras o Johny recebeu um cruzamento milimétrico para o golo e arranjou contrato até chegar a data da incorporação. Os tempos foram passando e a relação com os directores e o Johny cresceu favoravelmente. Era um tipo educado, pontual, e, sobretudo muito estimado pelos alunos que transportava bem como pelos monitores. Ao fim de um mês o Johny sugeriu levar a carrinha à oficina do Manel Sem Pescoço para afinar o ralenti. Mas como a utilização durava todos os dias úteis só era possível fazê-lo ao fim de semana. Sem cobrar nada. No primeiro fim de semana a carrinha voltou não só na melhor das afinações como vinha lavada e a brilhar por dentro e por fora. Em breve, de quinze em quinze dias a carrinha passava a fazer uma estadia na oficina do Manel Sem Pescoço ao fim de semana. Só que a essa estadia não era de repouso permanente, era preciso experimentá-la, fazer ensaios ao motor, estabelecer rotas como por exemplo desde o bairro até ao 2001 no autódromo do Estoril, ou até ao Mister Green a caminho da costa, ou ao Seagull ou ao Tunel. Para verificar as afinações claro está… E foi assim que o nosso grupo resolveu o problema do transporte da cidade para algumas catedrais da diversão fora de portas. Tudo correu sem incidentes até o Johny entrar para a tropa. Carrinha devolvida, salário em dia e a promessa de recolocação no regresso à vida civil.
Houve apenas um pequeníssimo detalhe nesta história toda que podendo ter corrido mal acabou em bem. Numa noite de Sábado para Domingo aí pelas três da manhã a Brigada de Trânsito estava ali na àrea de Oeiras. Vendo uma carrinha de transporte escolar, coisa que não dava nada nas vistas mandaram pará-la. O Johny estava limpo, não bebia para não ser entalado. Apresentação de documentos, teste do balão, tudo nos conformes. Ao ler novamente o livrete o guarda repetia em voz alta: "Transporte de crianças deficientes…muito bem." Depois espetou a cabeça lá para dentro e deu com cinco móinas, uns a dormir de boca aberta outros com o olhar no infinito. Virou-se para o Johny. "Então e aqueles?" O Johny com o mesmo ar de senhor educado e colaborante que costumava exibir quando se sentia apertado, olhou para trás e depois para o guarda.
"Aqueles ali…chumbaram."

Artur


3 comentários:

MaRiA BeCaS disse...

Que maravilha!
Conhecendo o Autor, ler esta história, com esta escrita, é como estar a ouvi-lo a contar ao vivo.
Que maravilha!

CEU PONTES disse...
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Unknown disse...
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