domingo, 8 de dezembro de 2019

CONVERSAS COM UM MELRO









Fora de horas, aproveitando uma pausa, esgueiro-me sorrateiro até à janela da cozinha e acendo um cigarro julgando que ninguém está a ver. Nem eu. Às vezes o melro da rua anda na sua correria diária para trás e para a frente. Quando me vê resolve também ele fazer uma pausa e vem até ao parapeito da janela. Falamos de tudo e mais alguma coisa, como é que vai a vida de cada um, a saúde, as doenças, o tempo e tudo aquilo que costumam falar dois seres vivos quando calha encontrarem-se a meio de uma pausa comum. Da última vez andava angustiado com o esforço que tinha que fazer para alimentar a descendência. Os filhos eram uns galfarros que nunca estava satisfeitos. Sempre de boquinha aberta para comer mais nem que se lhes tivesse acabado de enfiar um boi pela goela abaixo. Isso foi no princípio do Verão. Agora já voam sozinhos e procuram comida para eles. Pergunto por onde andam. Foram com a mãe aprender a utilizar as correntes ascendentes e a poupar energia das asas. Ele tinha estado no relvado do jardim a apanhar umas minhocas para o almoço. Insiste que tenho que deixar de fumar, que é uma estupidez insistir. Concordo com ele mas não me apetece, não de forma definitiva. Ele diz que desde que deixou que se sente muito mais saudável. Tem muito mais resistência, a comida sabe-lhe melhor e todas aquelas banalidades que diz um ex fumador. Vou buscar uma bolacha de chocolate e ficamos ali mais um bocado à conversa, eu a beber café e ele a depenicar migalhas.
Pego noutro cigarro e acendo-o. Ele fica a olhar para mim inclina ligeiramente o pescoço e pede-me muito educadamente uma "passinha". "Então não tinhas deixado de fumar?" É verdade…mas é só para matar o vício. E fica ali com o cigarro esquecido na boca, o que me leva a acender outro para mim. Continuamos a conversa. Na Primavera os filhos devem estar autónomos e prontos para partir para a vida deles. Tem uma boa casa ali na árvore grande da rua mas os invernos dão-lhe cabo dos ossos. Também a mim, queixo-me eu solidário. E o mundo? Nem vale a pena perder tempo com isso. Parece que tudo resolveu andar para trás. Fantasmas do passado encarnaram sólidos e tomaram conta dos nossos medos. Qualquer dia estamos a viver outra vez em plena revolução industrial sem darmos por isso. Que importa...? As nossas vidas, bem ou mal vão passando, a velhice vai-se instalando e adormecendo-nos a revolta. Outros virão que resolverão as coisas. Nós só queremos que o Inverno passe depressa e que os ossos não guinchem muito. Mal ou bem, fizemos aquilo que podíamos fazer. Mais coisa menos coisa, amanhã será outro dia, e outros dias se seguirão até àquele em que já não estaremos cá para o contar. Restam as nossas conversas na janela da cozinha, histórias relembradas, uns cigarrinhos escondidos de vez em quando nas pausas do recreio. O meu amigo despede-se e arranca em alta vibração de asas. O voo flecte ligeiramente para a esquerda, aponta a um poste da luz, endireita rapidamente. Já não está habituado a fumar, ficou meio tonto. A vida faz tanto sentido como um homem a fumar um cigarro com um melro na sua janela da cozinha enquanto conversam. E que outro sentido poderia ela fazer?

Artur






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