segunda-feira, 6 de junho de 2016

MAIS UMA CRÓNICA SOBRE COISÍSSIMA NENHUMA


Tudo começou em algum lugar, nem podia ser de outra maneira. Escrever é um acto de generosidade na medida em que quem o faz normalmente não foi obrigado a fazê-lo. Entende que deve traduzir em palavras uma história, um estado de alma e dá-lo aos outros. Mas a actividade da escrita é talvez das mais ingratas que existem na medida em que é quase tão antiga como a Humanidade, o que torna tudo muito mais difícil no que toca à originalidade. Diz-se que já tudo foi escrito, que já tudo foi feito no que à Literatura diz respeito. Está tudo na Bíblia, nas tragédias gregas e na obra de Shakespeare. Daí para cá tudo o que se puder fazer está limitado a variações acerca destes três colossos da memória humana. Convém portanto, se não ler exaustivamente, pelo menos ter uma ideia do que se trata antes de se embarcar na aventura da escrita. No tempo da informação exaustiva em que a ignorância é uma questão de escolha o que acontece é que é precisamente a ignorância que triunfa sobre tudo o resto. Vá-se lá saber porquê…
 Ando há que tempos a “engonhar” um post sobre um dos mais importantes realizadores do século passado (Ettore Scola) mas falta-me a coragem. Há tanto para dizer que dava para escrever pelo menos três livros sobre o assunto. Tantos filmes, tantos momentos altos de uma carreira extraordinária, tantos tratados acerca da condição humana. Uma tragédia de miséria e desgraça de duas horas e meia onde não conseguimos parar de rir, décadas de história contadas sem palavras num espaço de um salão de baile onde se sucedem as modas, o encontro improvável de uma dona de casa e um vizinho homossexual numa Roma deserta onde todos estão numa manifestação que comemora a visita de Hitler à Itália de Mussolini, ou a fuga de um grupo de cortesãos da fúria revolucionária de 1789 em Paris. Tanta informação, tantas questões, tanto motivo para reflectir. Ainda hoje ao fim de muitos anos fico assustado ante a enormidade e o génio. Invento pretextos para adiar, dedico-me a tarefas secundárias, deixo passar o tempo. Com o romance que estou a escrever passa-se o mesmo. Um turbilhão de sentimentos e emoções, um caudal de coisas que quero dizer mas que não se pode despejar de qualquer maneira. Porque há regras para a comunicação, há padrões para as narrativas, porque uma grande parte dos leitores não tem a minha idade nem a minha vivência. No fundo porque o objectivo é bater à porta daquele edifício a que chamam a Linguagem Universal e pedir que me deixem dar uma espreitadela, que me deixem estar só cinco minutos no átrio da casa e respirar. Que pelo menos um dos meus livros consiga saltar do “Cemitério dos Livros Esquecidos” para uma arrecadação dessa enorme casa. E assusto-me outra vez como naquelas tardes em que corria para casa todo esmurrado à espera da água oxigenada, do penso e dos lanches da minha avó. E continuo a andar às voltas, em avanços e recuos, preocupado com o assalto à Língua Portuguesa, sempre fascinado com a ideia de Portugal e com o que os grandes, os clássicos fizeram antes de mim. Por vezes deslumbrado com o que consigo fazer, outras vezes desesperado por me obrigar a despejar esta força para fora. Escrever é também o mesmo que não rebentar por dentro, facto várias vezes comprovado ao longo dos anos. O bem-estar que dá a finalização de um texto nas condições mínimas que tinha sido pensado. A dor de não escrever que se aloja dentro da alma e vai inchando quase até nos sufocar. Porque antes de tudo, serei sempre aquele que se assusta antes de se deslumbrar para se assustar outra vez. Aquele que nunca está satisfeito para pontualmente se poder satisfazer. E no fim sei que acabarei por arrancar e correr até ao fim, terminarei a tarefa. A forma como ela ficar será aquela que tiver que acontecer. Melhor ou pior. Nessa altura o susto e o deslumbramento ficam congelados para dar lugar apenas à acção. O que for, será. Nada a fazer, nada a acrescentar. O mundo é um lugar demasiado grande, as pessoas demasiado complexas, a vida demasiado cruel. Escrevo porque não sei nada sobre eles…continuo a escrever porque nunca os conseguirei perceber. E é nessa entrega sem retorno, nessa tarefa sem êxito, nessa obrigação sem castigo que torno útil o tempo de que disponho para cá andar, que dou sentido ao absurdo que me envolve, que bato timidamente à porta desse palácio encantado e gigantesco onde a maioria dos seres se encontra e convive sem nunca terem sido apresentados.


Artur